Numa velocidade sem precedente na história, a atual vaga de globalização tem implodido as barreiras ao fluxo de bens e capitais e à disseminação das tecnologias de informação. Mas mesmo em um mundo cada vez mais interdependente, muitos dos benefícios do desenvolvimento podem deixar de alcançar as regiões mais pobres do planeta.
Ao transformar os modos de vida tradicionais, a globalização produz tensões domésticas e amplifica problemas pré-existentes. Trata-se de questões que costumam escapar à capacidade resolutiva dos governos nacionais. Os países mais afetados pela desintegração social associada à integração económica tendem a ser, lamentavelmente, aqueles mais pobres.
De forma premonitória, ainda em 1997, o economista e professor universitário turco Dani Rodrik, um dos mais influentes e prestigiados do novo século, já questionava: “a globalização foi longe demais?”
Volvidas mais de duas décadas, as virtudes e os vícios daquele fenómeno restam amplamente evidenciados. Até por isso, o mundo assiste atualmente a uma reversão de muitos dos acordos regionais de livre-comércio e de integração económica pactuados na década de 1990. O multilateralismo, outrora considerado uma panaceia para o isolacionismo dos Estados, aparenta viver hoje o seu ocaso. Nem mesmo a União Europeia, a mais notável das Organizações Internacionais, escapou a ter as suas estruturas abaladas por tais ventos revisionistas.
Essa atual conjuntura desfavorável às Organizações Internacionais não deixa de impactar também a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Embora ainda incipiente como organização internacional, o potencial do seu património é incontestável. Em suas dimensões política, cultural e socioecónomica, a CPLP reúne condições para trilhar a senda aberta pela Commonwealth inglesa e pela Organização Internacional da Francofonia.
Em recente seminário realizado em Cabo Verde, cujo tema foi a relação Europa-África, o General António Fontes Ramos, professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, sublinhou a presença global da CPLP. “A sua internacionalização é facilitada porque existindo em entidades geograficamente separadas, alarga-se ao mundo pela integração dos seus componentes nas múltiplas organizações de que fazem parte, seja a União Europeia, a União Africana, o Mercosul, os BRICS ou no espaço Índico-Pacífico. A capacidade de exposição mundial da CPLP é, pois, evidente e de resto única”.
No entanto, a CPLP não tem se traduzido em desenvolvimento para os seus Estados-membros. Por isso, o desapontamento com a dinâmica daquela Comunidade não deixa de ser justificado. Apesar do inegável potencial para beneficiar os seus integrantes, os resultados da CPLP têm ficado muito aquém do que seria razoável.
Os casos de uma Guiné-Bissau marcada pela instabilidade política e de um Moçambique arrasado pelo Ciclone Idai, para ficar apenas nos casos mais sensíveis, revelam a necessidade e a urgência de a CPLP assumir um protagonismo à altura do seu potencial.
A inoperância da CPLP decorre em larga medida da negligência dos seus Estados-membros mais destacados, nomeadamente Brasil e Portugal. Com olhos atentos ao jogo internacional mais alargado, ambos tendem a definir as suas preferências desde um ideal de pertença ao tabuleiro das superpotências – ainda que seja apenas para gravitar em sua periferia. E já no âmbito na CPLP, as possibilidades de ação coordenada não raro acabam prejudicadas por disputas pelo protagonismo no seio da comunidade.
Foi em razão dessa disputa que, inebriado de ideologia e incapaz de dimensionar as suas reais capacidades, o Brasil do Partido dos Trabalhadores (PT) tencionou apadrinhar alguns dos países-membros da comunidade lusófona. Aos olhos da política brasileira da altura, tratava-se de um meio de projeção de poder, objetivando fortalecer o pleito por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Tudo isso, é claro, combinado a um esquema de corrupção estruturado com as ditaduras então no poder em Angola e Guiné-Equatorial.
Apesar de largamente festejado em certos círculos, o saldo das recentes parcerias entre o Brasil e países da África lusófona é escasso e dececionante; vai pouco além da criação da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), no interior do estado do Ceará, instituição cujos impactos são até hoje inexistentes.
Já uma segunda frente de ação do Brasil de Lula no sentido de conquistar a liderança na esfera da lusofonia revelou-se claramente equivocada: o patrocínio do famigerado acordo ortográfico. Com razão, muitos portugueses consideram ter sido a sua soberania linguística intoleravelmente atropelada. O simplório argumento segundo o qual a uniformização do idioma ajudaria a alavancar o desenvolvimento dos países mais pobres não bastou para convencer os seus falantes europeus.
O famoso artigo do presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, é sintomático da insatisfação de muitos de seus concidadãos com a mudança a eles impingida. Escrito ao arrepio das regras do acordo e publicado pouco antes da sua posse, o texto denunciou a petulância daqueles que desprezam a evolução natural e espontânea da língua portuguesa.
As disputas entre Brasil e Portugal têm contribuído para tornar os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOPs) ainda mais céticos quanto ao potencial da lusofonia para incrementar o seu nível de desenvolvimento. Enquanto a CPLP segue emperrada, o Português enfrenta hoje em África a forte concorrência de línguas locais e mesmo de outros idiomas europeus. Nesse sentido, vale destacar o caso do Crioulo, em Cabo Verde, a reforçar nacionalismos latentes, e o Inglês e o Francês, cuja atratividade deriva das potências económica e cultural das nações que os adotam.
Mas a distância que impede o Português de rivalizar com o soft power das comunidades de língua inglesa ou francesa não esgota o rol dos atuais obstáculos à lusofonia. Há também um obstáculo estrutural, que impacta não apenas a CPLP, mas as instituições multilaterais em nível geral, nomeadamente aquele que foi primeiramente identificado por Dani Rodrik ainda em 1997, e posteriormente elaborado no seu Paradoxo da Globalização (2011): o dilema entre “hiperglobalização” e soberania nacional ter favorecido o regresso do unilateralismo.
Motivado pelos prejuízos da globalização sobre a soberania dos Estados, o isolamento e o unilateralismo corroem o apelo da ideia de um mercado global. Nesse contexto, as organizações internacionais passam a ser denunciadas e o nacionalismo exacerbado alastra-se com a mesma rapidez com que capitais costumavam entrar e sair dos países que, desregradamente, abraçaram a liberalização económica como remédio para o seu atraso.
É inegável que o modelo de governança global idealizado por Churchill e Roosevelt expresso inicialmente na Carta do Atlântico (1941), está sob ataque e desacreditado. Sua dinâmica original foi desvirtuada por Estados que, de forma casuística e conveniente, valeram-se das organizações internacionais para favorecer os seus próprios interesses. Cinicamente, tais Estados acostumaram-se a observar as normas de governança internacional apenas quando essas serviam aos seus propósitos particulares, seja no sentido de ganhos de poder, seja no de manutenção do status quo. A real preferência dos Estados mais poderosos por soluções unilaterais apenas reforça o caráter anárquico do sistema internacional – expresso na fórmula realista “toma conta de ti mesmo”!
A configuração de uma ordem multipolar em que China, Rússia, Irão e outros Estados iliberais ocupam lugares privilegiados e na qual os EUA atuam crescentemente de forma irresponsável é um fenómeno potencialmente perigoso. Ele é especialmente propenso a arruinar um modelo de governação mundial que, se não é perfeito, teve o inegável mérito de contribuir para mais de sete décadas de desenvolvimento e paz mundial – Putin erra quando afirma que as ideias liberais estariam obsoletas.
Por implicar a perda de protagonismo de organizações como a CPLP, o nascente ethos unilateralista é prejudicial sobretudo aos países mais pobres. Uma ordem internacional inclusiva, baseada em solidariedade liberal-democrática, segurança coletiva, cooperação multilateral e livre mercado, apresenta as melhores chances de se conciliar crescimento económico e desenvolvimento social. Fora dela, arrisca-se a volver à barbárie.
Jornalista e doutorando em Ciência Política e Relações Internacionais no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa. Pesquisa os desafios do multilateralismo liberal no presente contexto de transformação da ordem mundial.