A tempestade que se forma no horizonte parece perfeita. A combinação de líderes politicamente fracos e de moral duvidosa com uma opinião pública histérica faz emergir práticas que ajudam a fragilizar ainda mais o polo das democracias liberais. A forma como as pessoas reagem à agressão conduzida por Vladimir Putin contra a Ucrânia indica o abandono de alguns dos pressupostos que respondem por cinco séculos de liderança ocidental do mundo.

Princípios consagrados como direitos humanos, liberdade individual e estado de direito estão virando lenda no Ocidente. A série de pânicos morais que tem lugar com o deflagrar da guerra entre Rússia e Ucrânia assume a dimensão de histeria coletiva. Tomar o russo como sinônimo de heresia e fonte de todo o mal faz parte do processo de cancelamento do direito à liberdade individual. A sistemática discriminação preconceituosa tem conduzido as orgulhosas democracias liberais do passado aos porões de regimes que se pensava enterrados pela História.

O acidente de ter nascido no país que Putin governa como dono das almas que nele habitam não faz das pessoas, obrigatoriamente, apoiantes do regime do Kremlin. O boicote a “tudo o que for russo” abriu a caixa de Pandora que normaliza a perversão no Ocidente. O chamado “ódio do bem” está liberado para ser praticado sem moderação. A russofobia é o preço a ser pago pela agressão ordenada por Putin. Claro, a imprudência do tiranete démodé conspurcou o paraíso liberal redentor da humanidade.

Entretanto, é razoável acreditar que apenas uma ínfima minoria de russos no exterior pode ser enquadrada como oligarca integrante da camarilha de Putin. Por isso, vandalizar propriedades públicas ou privadas relacionadas aos russos, impedi-los de trabalhar e estudar, bloquear e confiscar seus bens sem o devido processo legal são práticas que aproximam o Ocidente da degeneração própria de seus inimigos.

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A jornalista e escritora norte-americana Bari Weiss acerta ao demonstrar a derrocada dos valores e ideais que distinguem o Ocidente enquanto modelo civilizacional. “Em sociedades livres e justas, julgamos as pessoas como indivíduos, não como membros de um grupo. Nós os julgamos com base em seus atos, não com base nos atos de seus pais. Ou pessoas do mesmo sexo. Ou código postal. Ou cor da pele”, publicou Weiss.

O regime moldado e liderado por Putin é o real inimigo do Ocidente. A guerra que deve ser travada é contra o putinismo e tudo de execrável que ele representa para os amantes da liberdade. Nessa trincheira virtuosa, seguramente, pode ser incluída a maioria dos russos, sobretudo as pessoas simples que escolheram viver em países onde a democracia promete algo mais do que o simulacro que o Kremlin criou para legitimar a tirania de Putin.

Mas as democracias liberais agora parecem dispostas a renegar os êxitos do passado. A guerra fez as máscaras do cinismo caírem. A tragédia emerge nas redes sociais, a nova fogueira da inquisição. Michael McFaul, que serviu como embaixador de Obama na Rússia, escreveu no Twitter: “Não há mais russos ‘inocentes’ ‘neutros’”. A infâmia poderia até ser relevada. Mas pelo frenesi de postagens de McFaul no microblog, percebe-se tratar de um servidor público internacional ressentido.

A discriminação generalizada é a regra da Internet. O próprio Facebook passou a permitir que pessoas na Ucrânia, Polônia e Rússia fizessem manifestação de violência contra Putin, a Rússia e soldados russos. A conclusão é óbvia, a plataforma proíbe o discurso de ódio somente para questões definidas de acordo com critérios aleatórios próprios. No conjunto, as redes sociais governam a opinião pública mundial sem que para isso lhe tenham atribuído um mandato.

Dominar as narrativas tem sido uma guerra particular no conflito entre Rússia e Ucrânia. A importância estratégica da propaganda na crise não encontra precedentes na história. Não por acaso, tão logo começaram as hostilidades, os EUA e seus aliados bloquearam a parafernália midiática da Rússia. Talvez seus governos tenham pouca convicção quanto à qualidade moral das suas decisões. Ou as pessoas no Ocidente agora precisem de tutela para não serem seduzidas pelas mentiras de Putin.

Todavia, é nesse contexto turvo que emerge a figura heroica de Volodymyr Zelensky. Ilustre desconhecido para a maioria das pessoas, rapidamente o presidente ucraniano capturou a atenção do público em várias partes do mundo. Tornou-se o Churchill de t-shirt sob o êxtase da imprensa mainstream. Da mesma forma, a ordem política do seu país tem sido equiparada às democracias liberais.

A máxima de que a primeira vítima da guerra é a verdade nunca fez tanto sentido quanto agora. A proximidade entre Ucrânia e Rússia não é apenas geográfica. Politicamente, as duas ex-repúblicas soviéticas guardam enormes semelhanças. A começar pelo fato de ambas serem dominadas por oligarcas corruptos, responsáveis pela pauperização das suas populações.

De acordo com dados da Transparency International, a Ucrânia é um dos países mais corruptos do mundo. Ocupa a posição 122 dentre 180 países listados no Índice de Percepção de Corrupção elaborado pela ONG. Um pouco pior, a Rússia figura na posição 136. Em matéria de democracia e liberdade, os ucranianos estão um degrau à frente dos russos. A Freedom House classifica a Ucrânia como “parcialmente livre” e a Rússia como “não livre”. Entretanto, o relatório da ONG sobre o país governado por Zelensky é desolador.

“O nacionalismo e o extremismo de direita na Ucrânia moderna representam uma ameaça ao desenvolvimento democrático da sociedade. Organizações de extrema direita rejeitam valores democráticos (como liberdade de expressão, liberdade de reunião, igualdade etc.), mas usam ativamente as oportunidades que a democracia oferece”, diz o relatório da Freedom House.

Por tudo isso, o observador mais atento e imparcial das relações entre Rússia e Ucrânia não se surpreende com o comportamento de Zelensky e seus comandados no curso da guerra. Sob denúncias da Human Rights Watch e do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, prisioneiros russos são submetidos a humilhação pública na Ucrânia. A degeneração aumenta quando russos étnicos se tornam alvo de perseguição nas ruas de cidades de maioria ucraniana.

De boas intenções o inferno está cheio. Como se nota, democracia e liberdade não são o forte da Ucrânia. Mas sempre é possível piorar. Neste 20 de março, numa canetada, Zelensky baniu os partidos de oposição e unificou os canais de televisão na plataforma estatal. Censura sabe-se quando começa, mas o término é sempre um mistério.

Parece óbvio que o apoio do Ocidente à Ucrânia na guerra contra a Rússia tem vários motivos, embora nem sempre declarados como muita coisa em política. Porém democracia e liberdade não figuram como prioridades. É natural que a agressão russa desperte comoção ao nível dos ataques do 11 de Setembro. Como berço do Iluminismo, no entanto, o Ocidente deveria evitar adotar comportamentos exclusivamente com base na emoção. A invasão do Iraque, em 2003, não deixa boas recordações. A tragédia é sempre proporcional à convicção intuitiva.

As consequências de medidas imprudentes, tomadas no calor dos acontecimentos, ficam visíveis quando elas se voltam contra os próprios autores. A razão deve prevalecer sob pena de cedermos nosso lugar no mundo para os inimigos da liberdade. Enquanto os líderes ocidentais tocam o tambor da guerra, Xi Jinping apresenta-se como conciliador. Neste momento em que a crise toma proporções ainda mais perigosas e as relações entre a Rússia e o Ocidente atingem níveis de esgarçamento quase incontornáveis, é saudável que a diplomacia regresse à política.