Os desdobramentos da invasão da Ucrânia pela Rússia representam sismos que vão transformar a paisagem internacional de forma profunda. Os pressupostos prometidos pelos liberais mais convictos para governar o mundo no século XXI foram irreversivelmente abalados. De modo geral, crises são protagonizadas por perdedores e ganhadores. Enquanto a Rússia é isolada do Ocidente, as sanções impulsionam os Estados não liberais para fortalecer a cooperação mútua em estruturas políticas e econômicas alternativas. Na verdade, o conflito no Leste Europeu parece apenas acelerar uma tendência que se encontrava em andamento.

As ações para isolar diplomática e economicamente a Rússia tendem a fortalecer o clube dos autocratas. Exemplos não faltam para demonstrar que, se Vladimir Putin permanecer no poder, não será de todo abandonado. Genuinamente autoritário, o governo turco de Recep Tayyip Erdogan manifestou que não vai sancionar a Rússia, apesar de pressões da NATO.

Para reforçar essa tendência, a coordenação de políticas com governos autoritários em estruturas multilaterais emerge como a principal fonte de resistência da Rússia no longo prazo. Nomeadamente a Organização para Cooperação de Xangai (OCX) oferece alternativas a Moscou para tentar suprir demandas econômicas. Embora venha funcionando especialmente como mecanismo político e de defesa, um antagonista da NATO na Ásia, a tendência é de que os integrantes da organização absorvam parte dos negócios russos cancelados pelo Ocidente.

Uma olhadela no mapa é suficiente para entender a relevância e o potencial estratégico da OCX para a Rússia. Em abrangência geográfica e populacional, é a maior organização regional do mundo. De acordo com dados publicados pela AFP em novembro de 2021, seus membros somam cerca de 40% da população mundial e participam com mais 20% do PIB global, e crescendo. Hoje, liderada pela China, integram a organização Rússia, Índia e Paquistão, todas potências nucleares, além de outros países da Ásia central ricos em hidrocarbonetos.

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A aprovação da candidatura do Irã no final de 2021 aumenta ainda mais a importância estratégica da OCX. A contenção global da proliferação nuclear passa necessariamente pela cooperação dos seus integrantes. No momento em que se cogita o Irã para substituir o petróleo russo na Europa, as negociações para reativar o acordo de 2015, revogado unilateralmente por Donald Trump em 2019, foram paralisadas pela Rússia.

De qualquer forma, a proposta ocidental de limitar o programa nuclear iraniano, em troca da suspensão das sanções internacionais que estrangulam a economia do país, parece insuficiente para convencer o líder supremo persa. Neste 10 de março, Ali Khamenei avisou: “Não há ideia mais ingênua e simplória do que a proposta de diminuir nossa força defensiva para que o inimigo não se torne sensível”.

A desconfiança de Khamenei em relação ao Ocidente faz sentido. A propriedade privada e o estado de direito, fundamentos da democracia liberal, parecem ter sido relativizados em nome de objetivos políticos de norte-americanos e europeus. O congelamento do fundo soberano da Rússia e o confisco do patrimônio no exterior de pessoas do ciclo próximo de Putin remontam aos tempos de Guerra Fria. Todos se lembram de que os EUA apreenderam as reservas do Irã nos desdobramentos da revolução fundamentalista, em 1979.

O vale-tudo da era bipolar para conter o inimigo regressou à política externa dos EUA. Antes da Rússia, o Afeganistão já havia sido vítima de uma manobra drástica, de legalidade questionável. No início de fevereiro deste ano, Joe Biden mandou apreender 7 mil milhões de dólares em reservas afegãs depositadas num banco em Nova Iorque. Como um típico revolucionário, o presidente dos EUA justificou a medida como meio de indenizar as vítimas do 11 de Setembro e de financiar ajuda humanitária no Afeganistão. Talvez seja essa a “Doutrina Biden”.

Por isso, uma expropriação definitiva dos ativos russos apreendidos no estrangeiro não pode ser descartada. O álibi já existe, ajudar a reconstruir a Ucrânia. Mas a mão forte dos EUA mudou irreversivelmente a ordem monetária mundial. A exclusão da Rússia do sistema Swift, por exemplo, pode gerar um efeito colateral em cascata que atinge interesses estratégicos dos países no Ocidente, assim como prejudicar seus cidadãos comuns.

Nesse sentido, o desenvolvimento de uma estrutura financeira global alternativa tende a acabar com a supremacia do dólar como moeda de referência de trocas internacionais. Da mesma forma, ficará negado ao Ocidente o fluxo de informação sobre as operações realizadas por atores desonestos, facilitando o financiamento do terrorismo e da proliferação nuclear. A escalada da inflação é certa, uma catástrofe para os EUA. O país já enfrentava a maior inflação dos últimos 40 anos mesmo antes das sanções.

De um imperativo para a Rússia neste momento, a substituição do Swift surge como oportunidade para integrantes do clube das autocracias. Há muito, alguns deles vivem sob a alça de mira do Ocidente. O cancelamento profundo imposto à Rússia, que chega ao absurdo de gerar onda de xenofobia contra russos comuns (o ódio do bem é permitido), abre precedentes para novas investidas contra adversários recalcitrantes. Quem será o próximo alvo?

O desenvolvimento econômico não foi suficiente para dobrar o autoritarismo da China, como também não desencorajou a Rússia de empreender uma jornada arriscada na Ucrânia. Para desilusão dos internacionalistas liberais, a economia não derrotou a política. A soberania baseada em capacidades de segurança e defesa ainda molda o comportamento de muitas potências no século XXI, este que foi vendido como o nirvana liberal.

A sensação é de fim de festa em que os convidados de última hora resolveram se vingar da imprudência dos organizadores. Quem acredita ter nascido para protagonista não se satisfaz com papel de coadjuvante. O propósito de integrar a Rússia e a China numa ordem internacional liderada pelos EUA falhou miseravelmente. A promessa de uma ordem mundial regida por paz, democracia e livre comércio, marcas do narcisismo ocidental, ficou no campo da retórica. A anarquia é realidade dada da arena global. O palco do mundo é grande demais e parece comportar também uma festa organizada pelo clube dos autocratas. A unipolaridade sai de cena de forma melancólica. E não podia ser diferente.