Uso como pretexto a antiga fábrica de material militar de Braço de Prata, agora edifício municipal ocupado há 15 anos por uma trupe de artistas que não pagam renda nem fazem obras de manutenção. De maneira que aquilo vai caindo, com riscos sérios para a segurança das pessoas que, de resto, recebem com abundância. Ao ponto de ali montarem um parque de campismo para os alunos e professores dormirem nas autocaravanas enquanto estudam, uns, e ensinam, os outros, ou então ao contrário, cursos de “desobediência civil”. Nos intervalos, o filósofo que dirige aquilo entretém-se a dar entrevistas aos jornais e televisões declarando-se “orgulhosamente ilegal”. Discute-se ultimamente o destino a dar aos campistas, aos filósofos, e às tralhas que foram juntando. A Câmara de Lisboa não vê com bons olhos a minha sugestão de correr com todos à frente de uma retroescavadora e um destacamento da Polícia, seguindo as boas práticas exibidas no Zmar quando os militares da GNR apareceram às quatro da madrugada para instalar imigrantes nas casas das pessoas. Cães inclusive, não fossem os jornalistas lembrar-se de se aproximar. Ou quando a Câmara de Setúbal, governada pelos comunistas, mandou um buldózer com um martelo hidráulico visitar um desgraçado para lhe demolir a casa – miseravelmente ilegal – onde vivia, na serra da Arrábida. Uma ilegalidade pobre, em vez de orgulhosa, fanática e oportunista. Mas é como ia dizendo: não estando a Câmara de Lisboa disposta a seguir ipsis verbis as minhas recomendações, esperemos. Até lá, vejamos o que é costume acontecer em matéria de “cultura”.
O primeiro ponto a estabelecer é que não existe uma cultura neutra; a cultura ou tem um ponto de vista ou não é cultura. Proponho um exercício, deliberadamente simplificado para efeitos instrutivos, que ajuda a compreender como andam as coisas quando os artistas são de esquerda e quando são de direita. Começamos por imaginar um grupo de esquerda, do tipo daquele que se instalou em Braço de Prata. Rejeita o capitalismo, abomina o modo de vida “pequeno-burguês”, estimula a desordem, aprofunda todas as frestas da santimónia woke, instala-se à janela de um edifício público e dali ocupa-se de injuriar quem passa. Em rigor, dedica-se laboriosamente a fornecer legitimidade intelectual e suporte teórico aos partidos e governos da esquerda. O que fazem os governos da esquerda, centrais e municipais? Promovem e financiam estes artistas, em agradecimento pelos seus inestimáveis préstimos. E o que fazem os governos de direita? Promovem e financiam estes artistas, porque não querem ser vistos como sectários. Em nome da “não ingerência”, e da “independência”, e da “liberdade criativa” – uma burrice relapsa: não há “independência” alguma quando, para sobreviver, se depende de dinheiros do Estado. Mas existe outra razão. A direita demasiadas vezes acha que só lhe interessa interferir na parte económica, um erro cobarde que abandona a cultura nas mãos da esquerda.
Imaginemos agora que o grupo de artistas interpreta uma cultura de direita. Basta-lhe absorver alguns cânones da cultura clássica, assentar numa ou outra referência reconhecível, pensar no indivíduo em sociedade e produzir sobre ele uma reflexão limpa de idiotias woke. Uma canção, um livro, ou uma peça de teatro sem a mais remota referência ao “planeta” (em vez dele, o mundo); à “diversidade” (em vez dela, a inteligência); ao “preconceito” (em vez dele, os costumes); ao “privilégio” (em vez dele, a responsabilidade); ou ao “género” (em vez dele, as aspirações humanas). Um grupo, em resumo, conotado com a direita. O que fazem os governos de esquerda? Ignoram estes artistas e promovem a sua depreciação. E o que fazem os governos de direita? Ignoram estes artistas, para não serem vistos como sectários (o mesmo argumento que lhes serviu para promover e financiar a cultura de esquerda). Além disso, imaginam que evitam ficar manchados pela depreciação da esquerda. A direita receia a desonra pública de não financiar a cultura esquerdista e a desonra, ainda mais escandalosa, de financiar a sua própria cultura. Como se atreveria?
De maneira que a estupidez disto tudo dá vontade de chorar. A direita tem de compreender que a esquerda nunca vai aceitar – muito menos, respeitar – as políticas culturais da direita. Seremos chamados “fascistas”, ou “racistas”, como agora está na moda. Qualquer discórdia com as excelências da Pátria, que o mesmo é dizer com os próceres do PS e da extrema-esquerda, será sempre meticulosamente insultada. Só que os eleitores da direita, sobretudo quando votaram claramente contra projectos políticos da esquerda, merecem ver os dinheiros públicos aplicados em políticas culturais de direita. Não fazer isso é um erro político por esperar da esquerda um reconhecimento que a esquerda, se Deus quiser, nunca nos vai dar. Mas é também uma falta de respeito que afasta de nós tanto os artistas como os eleitores.