Numa terça-feira sem história esbarrei no meu vizinho Ricardo, à porta do prédio. Sinceramente, não me apetecia meter conversa, pois sabia que a mulher morrera com Covid. Nunca gostei de encher chouriços desde que, em pequeno, acompanhava a minha mãe ao talho e via o sangue a pingar das carcaças dos animais penduradas nos ganchos, e mandava depenar uma galinha com água a ferver, enquanto atravessávamos a rua para ir tomar um galão na leitaria do senhor Domingos, com uma ventoinha no tecto, que eu imaginava desprender-se, um dia, e decepar a cabeça de algum infeliz distraído com os anúncios do Diário Popular, mas não havia forma de escapar.

O Ricardo agradeceu os meus sinceros pêsames pela morte da mulher, coisa em que nunca me senti à vontade, e falou-me do seu infinito amor, do olhar compassivo e da sua automática presença, para lhe lamber feridas e humilhações transformada, agora, em eterna saudade, e da filha sempre extremosa. Uma filha que nada tinha a ver, recordava-me ele, com aquela das notícias, que sufocara a mãe com oitenta anos, entrevada há trinta, com uma almofada do IKEA, para lhe aliviar o suplício. Uma história triste sobre uma mulher que não quisera deixar pontas soltas ou encargos para a neta, que achava não ter arcaboiço para lhe mudar a fralda três vezes ao dia. Ao fim de um quarto de hora já estava farto da conversa, tartamudeei qualquer coisa sobre atrasos e compromissos, mas ele segurou-me no braço, insistiu, continuou a discorrer sobre a fatalidade, a condição humana, o capitalismo, a loucura do Putin, a guerra na Ucrânia e a subserviência do Ocidente, as doenças e, mais uma vez, sobre a mulher, recordando a sua beleza extraordinária quando jovem, cabelo louro e brilhante, as sobrancelhas arranjadas a régua e esquadro, a separar a fronte alva e franca, de olhos cálidos, cor de amêndoa, sorridente, de uma obstinação construída, apaixonada em relação à vida, os sacrifícios, as perdas, a disponibilidade total para ajudar os outros a levar o barco para a frente não importando para onde, tal a descrição e o choro que também eu me senti sepultado em lama e pedras e depois calou-se, fitou o seu olhar no meu, uma leve tremura no queixo, um aceno de cabeça e seguiu o seu caminho. Entrei em casa, finalmente, afundei-me pesadamente no sofá, eu que, sem estaleca para perceber se o destino era uma graça ou uma força, teimava em aceitar todas as vicissitudes achando que o cérebro ainda era um território de escolha contra Deus, essa abstração de carácter inquisidor e punitivo, perdendo-me na superficialidade do quotidiano obcecado com o progresso e as redes sociais.

A luz desliza sobre o meu rosto, olho de soslaio para o relógio, silêncio profundo com a preguiça a medir-se pelo espaço que medeia entre o sofá e o comando da televisão pousado em cima da mesa. Faço zapping entre big brothers, futebol e anúncios, paro num documentário sobre Charles Aznavour, O mundo não acaba às portas de Paris, coço a cicatriz profunda no queixo e penso no dia em que eu e a minha cicatriz fomos à consulta de urologia, já depois dos exames feitos, com o céu pesado a prometer chuva, longe de imaginar que me iria tornar num objecto de medicina poética quando o clínico me fez a pergunta de modo frio e sem rodeios ou desvios: Oica!

– O seu seguro cobre internamento?

Não. Não cobria. Depois do despedimento do banco, onde deixei um quarto de século da minha vida, perdi o direito ao seguro, ao salário e agora, pelos vistos, à estabilidade e à saúde.

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Adenocarcinoma gleason 7. O palavrão, assaz incontornável, prende-me a atenção e não augura nada de bom.

Por mim era uma prostatectomia radical. Kaput! Depois isso passa para os ossos e é uma chatice, mas se você quer arriscar, siga!

Perdera-me já das palavras do médico, pensava agora nos episódios de infância, que por lá ficaram e se evaporavam nas palavras da minha mãe quando se referia ao cancro como um caranguejo que comia os interiores em silêncio e à traição, uma saturação de memórias, da vida que sempre levei e, de repente, deixei de suportar o movimento, as ruas, os vizinhos no elevador, “então nunca mais chove?”, a porta do prédio a precisar de um trinco novo, os do rés do chão sempre em obras, o ruído que as pessoas faziam a mastigar no refeitório da companhia, aquele nhan nhan nhan com a respiração de olhos fixos no prato como se a comida fugisse e só parasse no estômago fistulado de um desconhecido. O clínico desenrolava as hipóteses de tratamento, os riscos, a vigilância, as análises, as densidades, as fluxometrias, injecções, catéteres e repetição de exames, mais análises, densidades e fluxometrias. Aos poucos, dilui-se a música de fundo, o movimento das macas que desliza nas calhas dentro das ambulâncias, as portas que se fecham ou o homem que, no intervalo de um cigarro, se queixa que os dentes se desfizeram como gesso com a quimioterapia.

Pego no telemóvel e passo os dedos pelo ecrã. Facebook, notificações, mails com promessas de aumento do tamanho do pénis até quinze vezes, prémios da lotaria da Nigéria, heranças de monarcas da Mongólia e os segredos mais sórdidos da NASA e do Vaticano.

Pouso o telemóvel, suspiro e, finalmente, levanto-me e saio porta fora, à procura de um futuro que não se desmorone nos próximos dois minutos.