O Paulo tinha muitos defeitos. Se mais se menos do que toda a gente, não sei. Não sou contabilista. Tenho pena de não ser contabilista. Podia agora saber o exacto número de horas que passei ao telefone com o Paulo, o telefone fixo, a dizer mal e bem de tudo e todos. E a quantidade de horas que passei no meio dos livros do Paulo, a falar de livros. Mais a quantidade de horas que passei com o Paulo a ouvir música, a ser informada detalhada, minuciosamente das virtudes divinas da cantora que no momento lhe arrebatava as paixões.

O Paulo foi de propósito a França assistir a um concerto da Patricia Petibon, com acesso à estrela meio disfarçado de jornalista, e levou um pequeno texto cuidadosamente trabalhado para lhe entregar, um texto com humor mas intensidade suficiente para impressionar qualquer Patrícia. Disse-me que ela lhe sorriu de uma maneira especial e só pode ser verdade. O Paulo preparou-se meses para um encontro de segundos com uma diva da ópera. Um olhar da Patricia Petitbon deu ao Paulo alento para cinquenta histórias de amor arrebatado e felicidade para sempre, escrita nas estrelas, nos maços de tabaco, nas leis da história, nas certezas optimistas, na luz da farmácia do outro lado da rua ou nas letras da estação dos correios da esquina.

Tinha muitas paixões, o Paulo, porque tinha muita imaginação. Podia saber o número delas, mas não sei. Um número suficientemente alto para dar mais horas de conversa em muitos almoços e jantares. Muitas horas e muitas gargalhadas porque, já sugeri acima, o Paulo ria-se imenso. Sabia identificar o ridículo com a paixão monotemática de um entomologista, com a diferença de que o Paulo não era monotemático.

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Há que acrescentar a todas estas as horas que passei a fazer de chauffer, porque o Paulo não guiava. O Paulo não tinha carta. O Paulo era um homem de táxis e amigos. Várias vezes fui eu o amigo disponível para levá-lo à Foz do Neiva, o lugar de veraneio do Paulo. Não conseguiu convencer-me a gostar de lampreia, ou a aceitar que em Hobbes não existe um direito de resistência e que em Hume os sentimentos calmos são a mesma coisa que a razão. Então preciso de somar as horas passadas a discordar, porque também foram muitas.

O Paulo dava-me os livros que tinha em duplicado. Porque o Paulo tinha tantos livros mas tantos livros que não admira que os duplicasse. Mas admirava-me mais que não os duplicasse muito mais e que soubesse tão bem que livros tinha. Para mal do meu interesse próprio porque, como disse, o Paulo dava-me os livros que tinha em duplicado.

Vou deixar a soma por aqui. Ainda é muito cedo e o choque ainda é muito grande. Muitas horas ficariam de fora se continuasse. Muitas horas só virão juntar-se à soma nos dias, meses, anos daqui em diante. E agora que, ao contrário do que devia ser, não vai existir nem mais um minuto, preciso de recolhê-las todas. Até ao último segundo que demora uma diva olhar de relance para um filósofo enamorado.