Há já algum tempo escrevi, para o Observador, um ensaio  em que analisava a produção dos livros vermelhos das espécies à luz da lei de Goodhart, que diz que quando uma medida (no sentido de um indicador) se torna um objectivo, deixa de ser útil para medir o que se pretende.

Um dos melhores exemplos disso é o da discussão recente sobre a alteração do estatuto de protecção do lobo, na Convenção de Berna, de espécie “estritamente protegida” para “protegida”.

O que me interessa não é tanto a alteração de estatuto da espécie ao abrigo da Convenção de Berna, uma burocralidade sem grande impacto na dinâmica da espécie, mas a forma como a discussão decorreu, em especial a forma como o sector da conservação da natureza resolveu demonstrar que está hoje muito mais preocupado com a sinalização de virtude que com a realidade.

Comecemos pelo pónei de Úrsula.

O sector da conservação resolveu que a coisa mais inteligente a fazer era ligar a decisão comunitária de propor uma alteração do estatuto internacional da espécie ao abrigo da Convenção de Berna ao facto de ter havido um pónei de Ursula von der Leyen que terá sido morto por um lobo, levando a presidente da Comissão Europeia, não a perseguir esse lobo em concreto com uma espingarda ou uma fisga, mas a perseguir toda a espécie através da aprovação de decisões europeias.

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Ficamos informados que toda a gente que defende esta tontice acha que presidente da Comissão Europeia tem poderes discricionários ilegítimos, assentes nos seus interesses pessoais, que conseguem vincular toda a União Europeia, através de decisões bovinamente seguidistas dos governos europeus.

A Convenção de Berna classificou o lobo como estritamente protegido em 1979 e, daí para cá, a espécie tem-se expandido a uma velocidade estonteante, ao ponto de países que há dezenas de anos, nalguns casos, 200 anos, não tinham lobos no seu território, terem hoje populações bem estabelecidas e reprodutoras, como a Alemanha (depois de 150 anos, em 1990 confirmou-se a primeira ninhada no país que hoje tem hoje mais de 150 alcateias) e os Países Baixos (11 alcateias num dos países com mais alta densidade populacional do mundo e que não tinha lobos há 200 anos).

Note-se que não se tem expandido com base em programas de reintrodução da espécie, mas por expansão natural, tendo a população europeia de lobos duplicado nos últimos dez anos.

Apesar da dinâmica da espécie que descrevi, e que pode ser facilmente verificada, o sector da conservação fez um barulho tremendo porque a União Europeia, em grande parte por pressão dos criadores de gado que estão fartos dos prejuízos, pediu à Convenção de Berna que classifique a espécie como protegida, em vez de estritamente protegida, para que a gestão da população possa ser adaptada à realidade.

Como é possível que o sector da conservação ache isto um ultraje?

A verdade é que o sector da conservação vive (com excepções que quero assinalar para não ser injusto com quem não merece) do drama da tragédia iminente, sendo por isso que, mesmo com uma espécie comprovadamente em franca expansão, há tanta gente que não vê o ridículo de a considerar como uma espécie que é preciso proteger estritamente.

A sinalização de virtude é uma condição base para se ter estatuto no mundo da conservação, por exemplo, não se pode dizer que faríamos melhor em aplicar os recursos de conservação nas espécies que são sistematicamente esquecidas, como a generalidade dos invertebrados, em vez de os aplicar em espécies muito instagramáveis, mas que estão em franca expansão, como o lobo, o lince ou o urso.

É este o contexto que permite que tanta gente na área da conservação e, já agora, tanto jornalista, ache normal admitir-se que numa organização fortemente burocratizada, com fontes de poder diversas e dispersas, frequentemente contraditórias, sujeita a forte escrutínio público e que vive de delicados equilíbrios instáveis, seja possível que por causa do pónei de Úrsula, a Comissão Europeia sugira uma pequena alteração numa convenção internacional.

Populistas há muitos e diversos, e nem sempre estão onde esperaríamos que estivessem.