O processo de inventário é o processo pelo qual, através da partilha, se põe fim a situações de comunhão de bens, na sequência de um facto catastrófico e de natureza traumática que interrompe uma relação humana e social normalmente longa e íntima.
O seu campo de aplicação mais propício é o da partilha de heranças, que se sucedem ao óbito recente de um progenitor, e no qual se debatem não só múltiplos interesses patrimoniais, muitas vezes calados durante anos, mas também mágoas, rancores e histórias secretas de décadas passadas. Ou então, põem um ponto final na sociedade conjugal, depois de um divórcio, carregado normalmente de sentimentos, desilusão e vingança.
Frequentemente, numa herança em partilha, o cenário torna-se ainda mais dramático por se tratar do tipo de procedimento judicial civil que aglomera um maior número de intervenientes, congregando cônjuges, filhos, netos e bisnetos, em gerações exponenciadas à duração do processo, numa espiral de tendente eternização, tornada tanto mais inevitável à medida que os direitos de cada parte envolvida se vai fracionando, de geração em geração.
Não espanta, portanto, que segundo as estatísticas da Justiça , os processos de inventário sejam, de longe, os processos mais longos de todas as jurisdições. A duração média dos processos de inventário em 2007 era de 42 meses e fixa-se agora entre os 60 e os 70 meses de duração, cerca de dez vezes superior à média dos demais processos especiais e quatro ou cinco vezes mais do que os processos comuns.
A gravidade deste panorama justificou uma grande instabilidade legislativa ao longo do último quarto de século, primeiro com a aprovação do Regime Jurídico do Processo de Inventário em 2012, com início de vigência longamente adiado e depois com a repristinação, com pequenas alterações processuais, do regime que antes vigorava.
A grande revolução introduzida em 2012, característica de uma política da Justiça assente na desjurisdicialização da Justiça, foi a de retirar dos Tribunais e entregar aos notários, recém-privatizados, a competência de presidir e conduzir os processos de inventário.
Retrospetivamente, parece que a decisão de retirar o inventário da competência judicial obedeceu a uma análise optimista do processo de inventário, talvez olhando apenas para o seu resultado desejável (a partilha) e menos para o processo, e partindo do resultado de parte dos processos, sem litígio notável, para a extrapolação que deixava de fora os processos que, podendo eventualmente ser menos habituais, eram porém os que maior atenção e cuidado exigiriam.
Aliás, é notório que todo o processo notarial era pensado numa lógica consensual, devendo o notário remeter os interessados para os tribunais sempre que se deparasse com um litígio maior, gerando nesses casos uma esquizofrenia processual de difícil conjugação.
A opção de incumbir os notários da condução do inventário não parece ter sido motivada por qualquer noção de uma maior adequação das suas capacidades naturais a este tipo de processo, nem por qualquer perceção de que os juízes não fossem o condutor natural de tais processos, mas simplesmente pela vontade de tirar processos e funções dos tribunais, para reduzir pendências.
Ora, nessa opção, que o tempo rapidamente se encarregou de demonstrar errada, em boa verdade se revelou a impropriedade da atribuição, pois que a natureza da função notarial é, na sua quase totalidade, passiva, não interventiva e muito longe de qualquer resolução de litígios. Um notário posto no papel de decisor entre vontades opostas perde, aos olhos de pelo menos uma das partes, a equidistância que lhe confere a sua autoridade.
E assim foi que, com a mesma ponderação com que se decidira acometer o inventário aos notários, se devolveram estes aos tribunais — como se essa experiência tivesse sido de boa memória.
Parece, porém, que pelo caminho, se esqueceu o lar natural do inventário.
Corria o ano de 2001, quando foram pela primeira vez instituídos, como tribunais de proximidade, os Julgados de Paz. Os princípios gerais destes, consagrados na sua lei fundadora, são “permitir a participação cívica dos interessados e (…)estimular a justa composição dos litígios por acordo das partes”, acrescentando-se que “os procedimentos nos julgados de paz estão concebidos e são orientados por princípios de simplicidade, adequação, informalidade, oralidade e absoluta economia processual.”
Foi no âmbito dessa iniciativa que se estruturou de forma sistemática, um sistema geral de mediação de conflitos, forma de resolução alternativa de litígios que se iniciara de forma tímida na área da família e menores.
Cito Juan Carlos Vezzulla (*), meu formador no primeiro curso de mediadores de conflito, em 2002: “A mediação oferece um ambiente propício para que duas ou mais pessoas envolvidas num conflito possam dialogar sobre ele assumindo uma conduta cooperativa e pacífica. O mediador é o profissional que as auxiliará para que possam entender o problema com clareza, distinguir os benefícios que poderão obter nessa negociação e as possíveis soluções para o conflito”, acrescentando “Atingido esse objetivo, estaremos focalizando o problema na sua real dimensão. Muitas vezes seu tamanho decresce e outras se mostra qual iceberg, no verdadeiro tamanho oculto. O importante é poder focalizá-lo por inteiro para, assim, procurar sua solução real.”
Relendo estas palavras, descobre-se que é nos Julgados de Paz, afinal, que o Inventário encontraria o local natural para se desenrolar. Aí, o Juiz de Paz, munido da autoridade legal que lhe é atribuída, atribuiria a autoridade e decidiria os incidentes que fossem surgindo, completando a atuação continuada do mediador, que nestes processos poderia ser interveniente obrigatório e talvez até propulsor ativo de soluções, de formalizações e de regularizações de que muitas vezes as partes, pelo carácter fragmentário dos seus interesses económicos, se desinteressam.
Não será tarde, pois, para corrigir o caminho e entregar agora aos Julgados de Paz, o Inventário que para eles deveria ter seguido depois da experiência falhada do inventário notarial — reconhecendo no dueto de Juiz de Paz e Mediador a figura agregadora que se julgou poder obrigar o notário a ser.