A Constituição americana tem sete artigos com 21 alíneas. Foi subscrita pelos 12 Estados que então constituíam a União e já foi revista 27 vezes, sendo que o número total de alíneas nas revisões é 33. Aprovada em 1787, as 10 primeiras revisões (“acrescentos” no parlance local) foram ratificadas em 1791 e constituem o chamado “Bill of Rights”. Das emendas restantes algumas modificam ou acrescentam ao texto original e uma revoga uma emenda anterior.

A nossa Constituição tem 296 artigos, dos quais muitos se subdividem em números, num total de 760, que por sua vez contêm alíneas, somando (uf) 422. Surpreendentemente, muitos aspectos da vida em comunidade ficaram de fora, como o comprimento das saias das senhoras, a quantidade de géneros e os modelos de corte de cabelo.

Sobre os anos decorridos o número de revisões representa no caso americano pouco mais de 11% e no nosso mais de 15%; e as normas do texto americano têm de ser multiplicadas por mais de 24 para o seu número se aproximar do nosso.

Mesmo assim, a nossa Constituição não agrada a ninguém. Daí que esteja a decorrer a oitava revisão, sobre a qual já há vários projectos. O texto definitivo será fixado por acordo entre o PS e o PSD, visto que a necessária maioria obriga ao conjunto de deputados daqueles dois partidos.

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Importa pois fazer o cotejo dos respectivos projectos, não tanto pelo que têm de diferente, que talvez não veja a luz do dia, mas por aquilo em que concordam. Convém, todavia, perceber donde vem a prolixidade do texto original.

A Constituição de 1976, tal como a americana, resultou de um processo revolucionário de mudança de regime. Mas num caso o que se pretendia era fixar os direitos dos cidadãos face ao Estado e regular este com pesos e contrapesos; e no outro estabelecer uma sociedade a caminho do socialismo, uma expressão equívoca que queria dizer, para uns, social-democracia e, para outros, comunismo, com uma extensa lista de direitos económicos para agradar a ambos. Ao que acresceram de direitos pessoais e garantias para satisfazer liberais e conservadores, obliterando as contradições entre estes e os à esquerda.

As revisões anteriores pretenderam cortar o cabelo à parte da regulação económica, decorrendo sob a constante de o PS aprovar em cada uma o que rejeitara na anterior. Simplifico, claro, que um artigo de jornal não é um ensaio. Mas quer-me parecer que o que se prepara é diferente: trata-se de aumentar o poder do Estado, reduzindo direitos e garantias. Vejamos, a começar pelo projecto do PSD:

A criação dos Conselhos da Coesão Territorial e Geracional: trata-se de mais dois organismos a sustentar pelo contribuinte, recheados de inúteis palavrosos, para promover fins generosos e vagos que poderiam ser assegurados por legislação ordinária, revogável no caso de acesso ao poder de quem tenha sobre estas matérias opinião diferente da que se quer fique gravada em pedra;

A alteração da idade legal para exercer o direito de voto a partir dos 16 anos: trata-se de conferir direitos ao acne, assentando no pressuposto de que a juventude é depositária de alguma espécie de lucidez que irá perder logo que chegue à idade adulta, eles, e tenha as mamas completamente formadas, elas;

O acesso universal e gratuito às creches e educação pré-escolar e o reconhecimento do estatuto de cuidadores informais: E isto deve figurar na Constituição porquê? Acaso a legislação ordinária não o pode assegurar, com adequação ao estado das contas do Estado?

O reforço e a clarificação de competências e participação dos órgãos das Regiões Autónomas: Portugal não é um Estado federal, mas o “reforço das competências” não é mais do que a acentuação da senda que vem sendo trilhada com esse fim. Os meus amigos liberais deveriam pôr os olhos nisto: acaso os governos insulares deixarão de reclamar mais e mais autonomia? E acaso isso funciona a benefício do todo nacional ou reforço da liberdade dos ilhéus como consequência da proximidade com o poder?

Uma nova visão de promoção do acesso à habitação: deve-se fugir das visões como da peste. Não há por aí falta de próceres da economia, na versão teóricos, que não tenham visões sobre como torrar dinheiro do Estado ao serviço do desenvolvimento, que foge teimosamente. Conviria não constitucionalizar delírios, a menos que se trate de retirar obstáculos à iniciativa privada. Mas neste caso, mais uma vez, a legislação ordinária basta perfeitamente;

A redução do número de Deputados à Assembleia da República para um mínimo de 181 e um máximo de 215, e previsão de que o número deve ser ímpar: Que interessa esta redução? Se é para originar poupanças o corte é irrelevante, em que pese à opinião de choferes de táxi e vociferadores sortidos; e se é para reforçar o poder do Centrão já basta o que basta;

Consagrar a existência de entidades intermunicipais em todo o território nacional: Mais organismos opacos para preencher com quadros partidários, a benefício de iniciativas quase sempre discutíveis e, com frequência, nefastas.

Isto consta do resumo acima lincado. No projecto de revisão propriamente dito (na realidade uma extensa lista programática cedendo a várias modas do tempo, incluindo o demagógico palavreado que anda no ar das alterações climáticas, alargamento de direitos económicos sem que em nenhum momento se esclareça de que forma são financiados e intenções piedosas abundantes, quase nenhuma das quais tem dignidade constitucional) refere-se, en passant como se fosse uma coisa menor, o seguinte:

Consagração da possibilidade de estado de emergência especificamente por razões de saúde pública e previsão de confinamento ou internamento por razões de saúde pública de pessoa com grave doença infetocontagiosa, pelo tempo estritamente necessário, decretado ou confirmado necessariamente por autoridade judicial competente [arts. 19.º e 27.º];

Trata-se de contrabando ideológico securitário porque com a actual Constituição o estado de emergência já é possível, com um prazo limitado a 15 dias (renováveis por iguais períodos mediante condições), mas por decreto do PR, consultado o Governo e com autorização da AR. O que esta formulação significa é isto: O Governo, com base no parecer de técnicos que ele próprio nomeia, pode determinar a suspensão por prazo indefinido do exercício de direitos, liberdades e garantias, prevendo-se, se necessário, o reforço dos poderes das autoridades administrativas civis e o apoio às mesmas por parte das Forças Armadas. O que, na prática, significa desde logo que qualquer cidadão, por decisão de médicos-funcionários nomeados (mas ainda que o não fossem) pode ser vítima de prisão domiciliária (ou em hotéis ou outros estabelecimentos). A necessidade de validação por um juiz é uma piedade, porque no âmbito de tal estado nenhum juiz quererá contrariar o médico. Porque não está para isso qualificado e porque os senhores médicos não hesitarão, como não o faria qualquer outra classe, em atropelar direitos em nome da “ciência”, que no caso vem a ser a opinião da maioria dos seus colegas.

A necessidade desta alteração baseia-se na hecatombe da Covid. Que a doença em si não provocou, por não ser terrificamente letal, mas antes teve origem nas medidas para a combater, que foram pior do que o soneto por originarem mortes por outras patologias, dada a mobilização quase em exclusivo dos serviços de saúde para combater aquela praga. Sem esquecer os severos danos na economia, na educação de crianças e outros que a consciência pesada de quem contribuiu para o pânico irracional ainda não permitiu que fossem devidamente sopesados.

Isto já deveria ser suficiente para deixar a Constituição em paz neste particular. Mas a eliminação do PR e da AR no processo não pode ser inocente: trata-se de reforçar o conformismo pelo expediente de banalizar um estatuto que deveria ser intocável, por ter a ver com a liberdade das pessoas. Fosse eu comunista e diria: foi para isto que se fez o 25 de Abril?

Isto é o PSD. E o PS, sem o qual a Constituição fica na mesma, que reza? Não encontrei o programa, e tanto melhor porque se o do PSD é uma abominação, o do PS deve ser um desastre. Mas encontrei, no site daquela seita, e na secção do militante, na qual penetrei com grande coragem, referências, no meio do palavreado enjoativo e modernaço do asneirol típico da casa, a este assunto. Em sintonia com o maior escândalo da proposta do PSD, diz-se o seguinte:

“… que deve passar a estar inscrita na lei fundamental a possibilidade de as autoridades de saúde pública cumprirem a sua missão para que ninguém ‘tenha dúvidas’ sobre a sua constitucionalidade, insistindo que se o direito à segurança está constitucionalmente consagrado como um direito fundamental, também o direito à saúde ‘deve ser assegurado e acautelado como um direito fundamental”. Ou seja, diz a mesma coisa que o PSD, isto é, para assegurar o direito à saúde nada melhor do que atropelar direitos, liberdades e garantias, suprimindo no processo o PR, a AR e o Tribunal Constitucional, que de futuro se verá coagido a coonestar abusos.

Aqueles que abrem mão da liberdade essencial por um pouco de segurança temporária não merecem nem liberdade nem segurança, terá dito Benjamin Franklin. Se fosse hoje vivo, recomendaria a desobediência. E é o que eu, com a autoridade que não tenho, recomendo, no caso de esta legislação celerada entrar em vigor.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.