Um carro despista-se na estrada, capota cinco vezes e termina reduzido às dimensões de uma bolsa da Hermès. Inesperadamente, o ocupante sai da bolsa, pelo próprio pé e intacto. A brigada de trânsito, que chegara entretanto, desatou a aplaudir. Depois, passou a inquirir o homem acerca dos méritos da sua condução: “Fantástico! O senhor automobilista estraçalhou o veículo com elevada precisão e saiu ileso. Que proeza admirável! Relate-nos, por favor e em detalhe, qual o método que utilizou no desenvolvimento de tão magnífico desastre”.
Lembrei-me desta história, que inventei agora, ao contemplar as análises babadas ao êxito da campanha do PS e à sua influência nos resultados do último Domingo. A campanha consistiu em: 1) o dr. Costa ser arrasado em debates, incluindo pelo infeliz dr. Rio; 2) o dr. Costa variar de opinião sobre objectivos e alianças três ocasiões por dia, ao sabor de sondagens esquizofrénicas; 3) o dr. Costa atribuir aos adversários propostas e propósitos falsos para depois criticá-los sem grande convicção. Em suma, a campanha foi um desastre, do qual o dr. Costa escapou com maioria absoluta. O dr. Costa não ganhou as “legislativas” graças à campanha, mas apesar dela. E o mesmo se aplica à governação.
Do nepotismo à inépcia, da corrupção à prepotência, nenhuma das conhecidas virtudes do PS parece incomodar o bom povo, ou uma parte suficiente do povo capaz de decidir eleições. Eis o ponto: entre aposentados, funcionários públicos e, reza a estatística, sujeitos com défice de literacia, o PS arregimentou a quantidade de gente suficiente para lhe garantir sucessivas vitórias nas urnas. Uns, habituados à penúria, agradecem os 10 euros que lhes adicionam directamente à reforma, e as lágrimas de felicidade não os deixam ver os 30 removidos por vias indirectas. Outros existem em rigorosa dependência da máquina socialista que tomou conta do Estado, pelo que não estão para arriscar perturbações. E os terceiros não carecem de justificação para engolir a demagogia que se tornou língua franca. A todos há que somar os respectivos familiares, que partilham a abundância.
Pobretes, mas alegretes: se o prof. Salazar se tivesse exposto ao voto popular, sairia provavelmente vencedor à conta desta exacta mistura de resistência à mudança e culto do atraso de vida. Toda a gente sabe que um quarto de século de governos PS nos empurrou para os fundilhos da Europa. Ninguém, ou quase ninguém, quer saber. Ninguém, ou quase ninguém, ambiciona os altos salários da Irlanda ou os baixos impostos da Estónia. Ninguém, ou quase ninguém, inveja a dinâmica empresarial dos EUA ou o escrutínio político da Dinamarca. Isso é muito bonito, mas não compensa o sossego em que repousa o nosso querido país – um digno esforço de legitimação de quem julga que a riqueza e a autonomia dos cidadãos implicam insurreições diárias, cadáveres a apodrecer nas ruas e, pior, cafezinho, vinhinho e bacalhauzinho bastante inferiores aos daqui. Mais a TAP, o SNS e a RTP, de longe os melhores do mundo.
É extraordinário impor e manter estes padrões de alienação e clausura mentais numa época saturada de informação. O PS e, em particular, o PS do dr. Costa conseguiram-no, e a subjugação bolivariana dos noticiários não esgota as explicações. Uma maioria – eleitoral e “absoluta” – de portugueses está de facto convencida da sorte que tem em ser guiada por uma personalidade sem paralelo nem vergonha. Lá fora, as trevas. Cá dentro, a luz, merecidamente das mais caras da Europa. Na luz, na água, na gasolina e no que calha pagamos imenso para desfrutar de uma maravilha que não tem preço (ai tem, tem): um Estado ilimitado, inviável e inútil. O Estado não nos serve de nada, nós servimos-lhe tudo. E agradecemos de seguida.
Perante isto, não admira que o eleitorado dos partidos comunistas tenha corrido para abraçar o PS. O PS, que em tempos imemoriais combateu o comunismo, hoje assumiu os seus princípios, apenas mitigados pela “Europa” e pelos dinheiros da “Europa”. Para quê desperdiçar uma cruzinha no PCP ou no BE se, de chofre, se pode entregar o poder a um partido estatista, que estrangula a economia, fuzila as liberdades e de brinde garante que, fora da nomenklatura, as pessoas ficam condenadas a uma subsistência medíocre e dócil? Não é voto útil: é voto convicto. Aos poucos, o PS tornou-se na entidade paternal – observem o espantoso trocadilho – dos pobres, de bolso e de espírito, que não se cansa de criar.
No acidente que referi acima, faltou dizer que o carro transportava passageiros. E que, antes de morrerem nos destroços, todos gritaram “vivas!” ao habilidoso condutor.