Em 1990, ano da morte por suicídio da minha mãe, falava-se muito pouco sobre saúde mental. Menos ainda de suicídio. Por isso não é de estranhar que, durante grande parte da minha vida, tenha sentido vergonha do que aconteceu e o quisesse esconder dos outros.
O facto de não se falar sobre o suicídio da minha mãe originou a seguinte história na minha cabeça: se isto me aconteceu e ninguém fala do assunto, então é porque não é aceite pelos outros. Logo, eu não sou aceite. Logo, existe algo de errado comigo.
De fora, é fácil perceber o enviesamento desta lógica. Mas o problema com o que nos causa vergonha é que, como não é falado, leva-nos a construir a ideia errada de que somos insuficientes ou estamos aquém dos outros ou das expetativas sociais.
Quatro anos após a morte da minha mãe, reuni toda a coragem que tinha e, pela primeira vez, partilhei a minha experiência por escrito. Entreguei o texto a uma professora em quem confiava, mas a resposta foi novamente um ensurdecedor silêncio e aquilo que interpretei como uma enorme pena por mim.
Naquele momento, a minha vergonha duplicou. É que a vergonha, vim a descobrir, multiplica-se no silêncio.
Ao longo dos anos, estas (e outras) experiências ajudaram-me a compreender quão generalizada é a vergonha na nossa sociedade. Talvez o leitor não se reveja nesta situação particular, mas existem outros temas pouco falados que causam igualmente vergonha: o divórcio, a infidelidade, a infertilidade, uma doença infeciosa e tantos outros.
A vergonha pode permanecer escondida mesmo em situações comuns do quotidiano. Por exemplo, já evitou apresentar uma ideia interessante numa reunião por recear que fosse rejeitada e isso lhe causasse humilhação? Isso decorre da vergonha, algo que todos experienciamos.
Então, o que podemos fazer para minimizar o impacto negativo desta emoção que nos faz sentir tão inadequados?
Se a vergonha é alimentada pelo silêncio, o melhor antídoto será a conexão, a empatia e a compaixão. Ao reconhecermos uma situação que nos causa vergonha, podemos partilhá-la com alguém que mereça a nossa confiança e saiba escutar sem julgamento, com compaixão.
Quando dirigimos essa mesma compaixão para nós próprios, aprendemos também a tratar-nos com gentileza, a reconhecermos que as nossas vivências difíceis são universais (fazem parte da condição humana), e que não estamos sós.
Sou consultora de comunicação e, nas formações que dou aos meus clientes, ajudo-os a desenvolver estratégias de autocompaixão e a transformar o diálogo interno autocrítico numa atitude mais gentil e construtiva.
Como se pratica, então, a autocompaixão?
Podemos conversar connosco próprios como faríamos com um bom amigo. Vamos supor que tinha apresentado a tal ideia na reunião e que tinha sido rejeitada. Em vez de cair numa espiral de vergonha e autodepreciação (“és tão estúpido, porque é que não ficaste calado?”), imagine que tinha a seguinte conversa consigo mesmo: “Ok, isto não correu como eu esperava. Sinto-me desiludido e envergonhado. Mas fui corajoso. Propor ideias diferentes, ainda que sejam rejeitadas, faz parte do processo criativo e do crescimento profissional. Muitas pessoas passam por esta experiência. O que posso aprender com ela? Como posso melhorar no futuro?”
Com esta prática, tornamo-nos mais autocompassivos. Isso permitir-nos-á sentir mais autoconfiança e autenticidade na nossa vida, e aceitarmos quem somos e a nossa história, incluindo os momentos mais difíceis.
Nos próximos dias, experimente estar atento às situações do dia a dia em que evita expor-se perante os outros por medo de um eventual julgamento. Faça uma pausa e reflita sobre a emoção que poderá estar a causar esse receio. Se for vergonha, respire fundo e lembre-se: não está sozinho nesta experiência. Trate-se com a mesma bondade que dirigiria a um amigo próximo.
Voltando à minha experiência, tive uma amiga que, anos mais tarde, ouviu a minha história com verdadeira compaixão e isso fez-me sentir muito menos isolada e inadequada relativamente ao que me aconteceu.
Mais tarde ainda, eu própria desenvolvi compaixão pela minha professora: ela era muito jovem e possivelmente não teria as ferramentas necessárias para gerir aquela situação difícil. Ainda que a reação dela não tenha sido útil, sei que se importava verdadeiramente comigo.
Finalmente, consegui abraçar e falar sobre a minha história (como faço neste texto), ao ter aprendido sobre autocompaixão. Passei a ter o seguinte diálogo comigo: “Isa, as coisas más que te aconteceram não diminuem o teu valor”.
O mesmo é válido para todas as outras pessoas.
A compaixão, por nós e pelos outros, tem esta capacidade extraordinária de nos reabilitar. De cada vez que a escolhemos, em vez de julgarmos severamente, damos um passo em direção a uma sociedade mais compreensiva e acolhedora. E só assim conseguiremos quebrar os longos e penosos silêncios que alimentam a vergonha.
Isa Alves tem quase vinte anos de experiência em consultoria e formação em comunicação. Trabalha com líderes e gestores nas áreas da Saúde e da Tecnologia, ajudando-os a comunicar com impacto, autenticidade e empatia. Atualmente, está a investigar e a escrever um livro sobre o tema.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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