A nossa ilha mais tropical já foi a casa de uma das melhores ondas da Europa. Alguns dizem mesmo, do mundo. O Jardim do Mar continua a ser um lugar incrível que atrai surfistas de todo o lado, principalmente, quando as tempestades atlânticas varrem as ilhas com condições XXL. Mas, a história que me contam é que a onda já foi infinitamente melhor, antes das obras que lá colocaram um passeio marítimo. Agora, só funciona quando está grande e só é boa para os poucos que conseguem ver ondas de 2 metros sem chamar pela mãe. Ou seja, 5% dos surfistas do planeta.

Todos sabiam que a onda ia, em parte, “morrer”. Muitos sabiam, também, que o valor potencial de uma onda daquelas, já naquele presente mas, principalmente, no futuro, traria uma riqueza à ilha da Madeira incomparável à de mais um passeio marítimo. Teríamos ali, talvez, mais uma Nazaré, uns Supertubos ou uma Ericeira. Quem sabe. Mas, reza a lenda que, quando as autoridades competentes foram averiguar o valor económico do surf na ilha, a representação era inexistente. Uns poucos federados. Lá fora, tirando um nicho, ninguém sabia nada sobre o Jardim do Mar.

E lá se puseram as máquinas a trabalhar.

A culpa da destruição dessa onda e de tantas outras é, em parte, dos surfistas: Acho que todos gostamos de ter os nossos cantinhos secretos – o nosso restaurante que ainda ninguém conhece, a nossa escarpa na montanha a que só nós vamos. Mas, no mundo do surf, os meios a que se recorre para manter lugares escondidos vão de um secretismo benéfico à intimidação  ativa daqueles que vêm “de fora”. O “vai para a tua terra” (mesmo que a minha terra seja a 15 minutos de carro) ainda é uma parte importante do léxico no mar. Às vezes, uma minoria consegue deixar um lugar “vedado” a muitos durante algum tempo. Noutros casos, não se consegue, como na Ericeira ou em Peniche, tornando apenas as idas à praia bastante desagradáveis para muitos, por causa de uns poucos. E, acima de tudo, não permitindo a existência de um quorum que esteja lá para defender um local, quando um pontão, um hotel, ou um passeio marítimo batem à porta.

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Ainda surfei Rabo de Peixe, a ex-melhor onda dos Açores, antes de acabarem com ela. Sobre Santo Amaro antes do pontão “para os pescadores” que cortou a onda ao meio, só vi fotografias. Tenho muitas imagens feitas em São Torpes, felizmente, para mostrar um dia aos meus filhos. Com a continuação prevista do pontão, seguramente, eles não conhecerão a costa que eu conheço agora.

Mas, saíndo do surf por um momento, quando me vejo no centro de Lisboa, onde moro, alguma coisa está diferente. Muito mudou para melhor, sim. Quando Lisboa começou a estar na moda a cidade ganhou vida, os prédios vazios ganharam gente e Alfama deixou de ser só música triste. Mas, em algum momento, passou a existir uma saudade qualquer. Ao contrário das ondas que se queriam propositadamente escondidas e impopulares, Lisboa parece ter ficado popular demais. E há um fado qualquer nisso que já todos os lisboetas sentiram: a parte boa da cidade está a ir-se embora e, em algum momento, as pessoas que a tornaram popular irão também. Foi como se a cidade tivesse perdido uma parte importante da sua “essência”. Mas o que é isso?

Para a conversa, diria que a essência de um lugar são as características positivas que o tornam aquilo que ele é. A paisagem, a forma como as pessoas vivem, as tradições, os cheiros, os sabores, as ondas e por aí vai…

Só conheço dois tipos de lugares que preservam ainda a sua essência: os que permanecerão como são apenas se ninguém os conhecer e os que permanecerão como são mesmo que toda a gente os venha a conhecer.

Os primeiros, lugares que só se mantêm preservados quando estão escondidos do mundo, temo, não durarão muito tempo sendo o que são. Eu compadeço-me com os suspiros daqueles que viram aldeias ou praias da sua infância tomar formas estranhas, quando foram descobertas. E entendo de onde vem a vontade dos surfistas que fazem comentários em instagrams alheios exigindo que se apague a fotografia de um lugar qualquer. Mas não posso concordar com ser essa a melhor forma de preservar quer cantinho especial ou uma cidade grande.

A primeira vez que coloquei os pés na caldeira de Santo Cristo, tinha 15 anos. Com alguns dos meus melhores amigos, passámos 15 dias sem eletricidade, entre as casinhas de há séculos e as ondas que escorriam pelos dois lados da pequena península. Viemos com tudo o que não podíamos pescar ou apanhar, porque na Fajã não há supermercados e não entram carros. Apanhávamos amêijoas da lagoa, lapas das pedras e peixe do mar. E vivemos alguns dos melhores dias das nossas vidas. Por isso, quando voltei, passados 12 anos, tive muito medo de ter perdido mais um lugar em que já fui feliz.

Mas, quase como um espanto, voltar à Fajã foi voltar, na essência, a uma década atrás. Sim, já há eletricidade (desde 2020). Sim, já é não suposto apanhar amêijoas. Sim, há, de vez em quando, mais gente na água. Mas o preço a pagar por uns poucos que puderam aproveitar o passado é baixo quando comparado com o que os muitos ganharam: não tenho medo de escrever sobre o lugar. Uma pesquisa rápida no Google mostra 4 artigos apenas no Observador. Algumas centas, em outros locais. Por mais que muita gente possa conhecer este lugar, a maior parte das características positivas que definem a Caldeira vão continuar lá. E, talvez surpreendentemente, não porque o segredo foi bem guardado por poucos mas porque foi amplamente protegido por muitos.

Entendeu-se o que era especial no lugar: Hoje e no futuro, não existirão construções novas na Fajã (a não ser sobre ruínas que já lá estavam). Não haverá uma estrada. E a comunidade (do que sei) entre as suas discórdias, vai entendendo o que faz a Fajã ser a Fajã e transforma a essência em regra para o futuro. E serve-se, como suporte, de toda a gente que adora o local e tem interesse em mantê-lo especial.

Claro que a Fajã é um caso particular. Mas o princípio é interessante: o que faz este lugar ser especial para todos? É a paisagem que se vê dos montes? São as pessoas da cidade? São os recursos naturais? É a música nas ruas e a cultura nas paredes?

Para os lugares que estão a caminho de serem destruídos por, em tempos, terem sido demasiado “cool”, talvez faça sentido entender que parte do “cool” se está a perder e trazê-la urgentemente de volta – mesmo que a algum custo imediato, para poder haver um futuro. Para Lisboa, que foi tão cool, de que se sente falta, na cidade? Essa essência perdida pode não ser uma palavra vaga, mas carências concretas: serão as pessoas que partiram? Como fazer para que não partam mais? Ou, até, para que as que foram possam voltar? Se foi uma parte da cultura, que parte foi essa? As mesmas estradas que a levaram para outros lugares podem trazê-la de volta, com as razões certas.

Para os lugares que são tão cool que os queremos guardadinhos só para nós, cuidado. Podemos contribuir mais para proteger os tesouros não descobertos desta vida se os trouxermos ao mundo pelas razões certas. E, principalmente, se essas mesmas razões puderem ser compreendidas e defendidas por todos. Até, porque, quando for preciso provar que estamos a proteger algo valioso, convém que esse algo não seja valioso só para nós.

O Observador associa-se ao Global ShapersLisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial, para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa.  O artigo representa a opinião pessoal do autor, enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.