O ditado “só se lembra de Santa Bárbara quando troveja” aplica-se perfeitamente à situação de combate aos incêndios em Portugal. Durante as tragédias, como os incêndios que assolam o país, vimos uma grande mobilização de recursos e atenção. No entanto, a prevenção e o planeamento estratégico a longo prazo são muitas vezes negligenciados até que as chamas já estejam fora de controlo. Esse comportamento reflete a falta de foco em medidas preventivas e estruturais, deixando a população e o meio ambiente vulneráveis até que o desastre atinja o seu auge, e a memória dos trágicos incêndios de Pedrógão em 2017, sete anos passados, recorda-nos o quão verdadeira é esta infeliz realidade!

Portugal viu-se na circunstância de pedir ajuda internacional e parte dela, porventura a mais expressiva e significativa, chegou através da intervenção da UME (Unidade Militar de Emergência) que projectou, de 17 para 18 de Setembro de 2024, a partir dos seus 1.º BIEM (“Batallón de Intervención en Emergencias”), 2.º BIEM e 5.º BIEM, respectivamente desde as bases de Torrejón de Ardoz (Madrid),  Morón (Sevilha, Andaluzia) e Conde de Gazola (El Ferral del Bernesga, Castela e Leão), um efectivo de 364 militares e 116 viaturas, para apoio ao combate a incêndios rurais no Norte e Centro de Portugal. Acrescem ainda 2 aeronaves Canadair CL-215T do 43.º Grupo (alcunhados de “Corsários”) da Força Aérea de Espanha sob a égide do Mecanismo de Protecção Civil da União Europeia.

Na ocasião, além das já habituais críticas de que as nossas Forças Armadas (FFAA) não estavam no terreno, na verdade só o Exército empregou neste combate 172 militares e 50 viaturas, além do empenhamento de meios da Marinha e Força Aérea, o que em temos percentuais para um efetivo de 26.000 para 120.000 do lado espanhol dá uma dimensão do esforço. Acresce que desde 01 de Maio a esta data, o Exército nos planos HEFESTO II e REVELLES, nos protocolos com ICNF e Municipais, já empenhou 4.728 militares, 2042 viaturas num total de quase 300 mil Kms por 14 distritos do País, registando 11 deteções iniciais de incêndios, de modo que, uma vez mais, se o Exército mais não faz é porque mais não lhes pedem, e só não vê quem não quer!

Esta presença da UME espanhola, uma vez mais dado que já em 2017 já tinham prestado apoio a Portugal, relançou a discussão sobre a razão por que Portugal, à sua escala, não dispõe de semelhante realidade.  Recuemos no tempo e relembre-se o historial desta questão. Após os incêndios de má memória de 2017 e depois de conhecidas as conclusões do relatório independente foram vários os dirigentes do PSD e CDS que insistiram na ideia de ser criada uma estrutura semelhante à UME espanhola, um braço militar do exército para a proteção civil. Acontece que, nessa data já existia o Regimento de Apoio Militar de Emergência (RAME) anunciado em 2014 em pleno Governo PSD/CDS e instalada em Abrantes desde Setembro de 2017. Em Espanha, a criação da UME foi anunciada em 2005, com o objectivo de ser um braço do exército altamente treinado e equipado para apoio às populações e às instituições em todas as situações de emergência. Teve uma dotação inicial de 750 milhões de euros e em 2008 já operava em metade do território espanhol. Em 2011 começou a operar em pleno em todo o território, sendo hoje considerada uma ferramenta fundamental no apoio e resposta a todo o tipo de emergências. Tem o quartel-general em Madrid, com vários batalhões, nomeadamente um de telecomunicações e um de intervenção em emergências, e mais quatro aquartelamentos e batalhões de resposta espalhados pelo território espanhol. São mais de 3500 operacionais, centenas de meios terrestres e marítimos e vários meios aéreos com valências diversas.

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Em Portugal, o anúncio da criação do RAME foi feito a 17 de Abril de 2014 pelo chefe de Estado-Maior do Exército (CEME) e, na ocasião sem grandes pormenores, disse tratar-se de uma estrutura vocacionada para apoio militar de emergência à proteção civil e a situações de catástrofe. No final de Setembro de 2014, o ministro da Defesa da altura, sobre a criação do RAME no âmbito da reforma Defesa 2020, referia que deveria ter cerca de 300 homens e que no aquartelamento seria reunido diverso material do Exército que pudesse ser um apoio na área da proteção civil. O regimento voltou a ser falado já sob a vigência de um socialista ministro da Defesa, com referências pouco abonatórias, como atrás se mencionou no relatório independente dos incêndios de 2017, e cito “o RAME materializou-se, porém, numa versão minimalista da intenção inicial, pois acabou por não se constituir como uma unidade militar com capacidades, meios e processos dos diferentes ramos das Forças Armadas. O RAME, na situação atual, não tem condições nem capacidade para ser verdadeiramente útil em operações de emergência.” E é o que temos!

As FFAA, desde sempre, têm estado presentes no apoio e reforço ao terrível flagelo dos incêndios florestais que anualmente assolam o nosso País, em ações de prevenção, combate e rescaldo, mas os mortos do Exército na Serra de Sintra, o “insucesso” da Força Aérea com o avião C 130 e, até há bem pouco tempo, a reduzida participação da Armada neste tipo de ações, alimentaram o preconceito de que os “militares não são bombeiros”, e curiosamente, nas cúpulas da hierarquia militar houve quem comungasse deste sentimento. O grau de “isolamento” dos Ramos sentido na “Reforma da Defesa 2020”, limitou o processo de criação no Exército de uma unidade tipo Regimento com especial vocação para as emergências. Em resultado disso, e como o poder tem horror ao vazio, cada Chefe ou Autoridade tratou de organizar a sua “quintinha” e assim hoje, em Portugal, várias forças e entidades estão envolvidas no combate a incêndios florestais, cada uma desempenhando papéis específicos dentro do Sistema Nacional de Proteção Civil (SNPC), dos Bombeiros Voluntários, aos Sapadores Municipais, dos “Canarinhos” aos Grupo de Intervenção de Proteção e Socorro (GIPS) da GNR, dos Sapadores Florestais do ICNF às equipas locais de proteção civil, etc para no final, em aflição quando vêm o “quintal” a arder se ativar o Mecanismo Europeu de Proteção Civil,

Ainda estamos a tempo, contudo de fazer mais – e melhor – e fazê-lo com base nos princípios de “Planeamento, Preparação, Treino e Ação Conjunta” e dar passos nesse sentido de forma sustentada. O novo governo deverá olhar para os sistemas que já dispõe e fazer convergir num Sistema Nacional de Emergências (SNE) estas capacidades. Os fogos florestais têm assumido (e previsivelmente continuarão a assumir) especial relevância na última década e com base nas virtudes e insuficiências já detetadas, há que seguir as boas práticas ao nível dos países que mais sucesso têm obtido nesse combate onde se aponta como vital que se inicie até meia hora após a ignição. Necessariamente deveremos dispor de um Sistema de Vigilância e Alerta eficiente e eficaz, de Forças de Primeira Intervenção rápidas, musculadas, profissionais e com elevada capacidade operacional e finalmente, de um Sistema Geral assente nos tradicionais corpos de bombeiros, para combate além da primeira hora. Em Portugal os corpos de bombeiros estão bem equipados, mas, assuma-se sem reservas, apresentam claros défices de comando, formação e treino, com consequências trágicas. As razões para aplicar o modelo UME em Portugal são fáceis de entender, desde a resposta rápida a incêndios florestais e outras crises, à coordenação e mobilização de recursos, à versatilidade e formação especializada, à prevenção e planeamento tendo nos custos de implementação e na integração com sistemas civis os seus dois maiores desafios.

Em 2017 o grupo de trabalho liderado pelo Tenente General Frutuoso Pires Mateus, e cito, defendia que o RAME deverá dispor de orçamento de funcionamento próprio a inscrever no Orçamento do Ministério da Defesa Nacional e ser dotada de programas específicos a inscrever na Lei de Programação Militar e na Lei de Programação de Infraestruturas Militares com um Comando Centralizado e dispor de Batalhões de Intervenção, com natureza de Unidades Operacionais Desconcentradas, nos Regimentos de Infantaria 13, em Vila Real, de Infantaria 14, em Viseu, no de Artilharia 4, em Leiria, no de Abrantes e no de Infantaria 1, em Beja e dispor ainda de apoios especiais a fornecer, sob controlo operacional, pelos restantes Ramos das Forças Armadas (Marinha e Força Aérea).

Este RAME com efetivos estimados na ordem dos 2000 militares cumpriria a todo o tempo – e em exclusivo – a missão atribuída nesta área da emergência, não devendo, como acontece com as restantes unidades militares dos três Ramos das Forças Armadas, ser chamada a cumprir outras missões de outra natureza. Desta forma se ultrapassaria um período de décadas, caracterizado pela utilização casuística das Forças Armadas em missões de emergência dentro do território nacional, para as quais, pese a disponibilidade e generosidade sempre patenteadas, não se encontram devidamente equipadas, instruídas e treinadas não constituindo assim uma mais-valia significativa para o SNE e para o País, devendo também estar capacitada para projetar subunidades e/ou elementos para o exterior do País, sempre que para tal for solicitada.

A «tradicional» relutância dos Chefes Militares em avançarem para soluções inovadoras, que requerem uma «visão fora da caixa», como era o caso da constituição de unidade militar com as características apontadas na “Reforma Defesa 2020”, levou a que um dos Ramos (no caso o Exército), numa lógica de aproveitamento da oportunidade então gerada constituísse o RAME; só que, como sempre acontece quando apenas existem capacidades de um único Ramo numa unidade militar da natureza pretendida, a mais-valia que esta pode importar ao País é muito incipiente. Para agravar a situação, o RAME, reproduz numa unidade de emergências um modelo que vem sendo “ algo endeusado” nas Forças Armadas, apelidando-o de “emprego dual de meios”, argumento interessante e eficaz para se conseguirem determinados apoios, mas que no caso se revela muito nefasto, porquanto assenta em meios militares localizados noutras unidades militares às quais recorre quando necessário, mas que acontecem numa lógica de missão subsidiária ou secundária para quem tem de a cumprir: “lá vamos cumprir uma missão com o pessoal do RAME”.

Ele próprio, o RAME, cumpre missões que nada têm a ver com uma verdadeira unidade militar de emergências, como acontece ao se constituir como “polo de formação do Sistema de Formação do Exército”, ou seja, dedica uma parte muito significativa do seu esforço a formar recrutas para o Exército, quando deveria estar a instruir, treinar e planear as possíveis intervenções nos múltiplos cenários que se lhe podem colocar, e nos quais o País espera uma intervenção competente e rápida.

Hoje o Exército ajustou neste campo as suas capacidades do RAME, separando a instrução do treino bem como o Comando e Controlo Militar de Emergência, por sua iniciativa interna de organização e a expensas do seu já curto orçamento, mas não consegue, por si só, resolver a questão dos efetivos, uma dificuldade extensiva aos demais Ramos, bem como não pode melhorar os seus meios num modelo de financiamento do Serviço Nacional de Proteção Civil onde nem mesmo sequer uma viatura, das inúmeras adquiridas no âmbito de fundos europeus ou PRR’s, e distribuídas pelos Bombeiros, GNR, ICNF, etc lhe é destinada. Ou seja, o Exército continua a receber do Estado a missão, a responsabilidade do apoio, mas nunca os meios humanos e materiais para a cumprir com eficiência!

A Unidade Militar de Emergências (UME) em Espanha foi criada após a morte trágica de 11 cidadãos no incêndio florestal em Guadalajara, em 2005. Nos incêndios de 15 de Outubro de 2017 em Portugal morreram 51 portugueses. Em 17 de Setembro de 2024 morreram 8 portugueses nos incêndios do Centro e Norte do País. Quantos portugueses mais terão de morrer para criarmos um RAME profissional, equipado e treinado em Portugal? Competirá, assim e agora, aos decisores políticos adotarem as medidas de governação entendidas como adequadas ou voltamos, quinze dias passados ao “rame, rame” conhecido? A resposta também é conhecida!