Na última semana, a sociedade portuguesa dividiu-se entre os que se escandalizaram com os custos da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) e os que defenderam aquilo a que chamaram “investimento”. Os primeiros alegam que o valor é de tal forma elevado que “magoa”; os segundos que “tem retorno”, invocando um suposto cálculo de cerca de 350 milhões, “como em Espanha” (país que investiu zero de dinheiros públicos).

Deixo as questões políticas para outros, até porque me parece demasiado evidente a incompetência de todos os envolvidos no processo, desde logo por terem perdido três anos e agora atirarem os procedimentos para “inevitáveis” ajustes diretos e para um escabroso e mediático passa-culpas.

Deixo as questões legais de tudo isto para os juristas, pois também aí me parece que, apesar das normas excecionais discretamente aprovadas com o Orçamento de Estado, há algum caminho a fazer, nomeadamente pelo Tribunal de Contas.

E detenho-me na questão do “retorno”, porque é a que profissionalmente me diz mais respeito. Desde há 30 anos que me tenho cruzado com a gestão profissional de patrocínios, com a criação e gestão de marcas, com avaliações de retorno e com a organização de eventos. Circunstancialmente, em funções próximas do poder político, fui chamado a opinar e a poder influenciar sobre a escolha de eventos e a sua realização. Estive envolvido em alguns bem complexos, muitos deles em partilha de responsabilidades tripartidas e quadripartidas, com Privados, Federações, Estado e Municípios. Rally de Portugal, RedBull AirRace, European Design Awards, Primavera Sound e Liga das Nações são alguns deles, em que foi preciso coordenar, defender o investimento público e dirimir inevitáveis conflitos positivos.

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Sobre a questão do retorno dou um exemplo que, parecendo distante, tem vários pontos de contacto com a JMJ e com a polémica corrente. Durante os seus mandatos, Rui Rio optou pela realização no Porto de um circuito automóvel. Como espectador e grande adepto que sou de automobilismo fiquei muito contente e gostei muito de ver as corridas, quando ainda não sonhava vir a integrar qualquer equipa na Câmara do Porto. E, por isso, quando em 2013 estive ligado à campanha de um candidato independente à autarquia, não me desagradou nada que ele admitisse a continuidade do evento, caso fosse eleito e “houvesse condições financeiras para tal”.

Contudo, após a eleição, felizmente vitoriosa para a sua candidatura, havia que tomar uma decisão e Rui Moreira decidiu não continuar a organizar o evento. O fim do financiamento do Turismo de Portugal, que no tempo de Rui Rio suportava parte do investimento, e a constatação de que estava em causa um custo de mais de três milhões de euros que recairia no orçamento municipal, levaram à sensata decisão, que aceitei e apoiei. E logo vieram os legítimos defensores do Circuito da Boavista dizer que fazíamos mal, alegando que o “retorno” era muito maior. Afinal, o que eram três milhões gastos pela Câmara quando havia estudos que indicavam um “retorno” de 60 milhões?

Tive o trabalho de explicar aos adeptos e ao público em geral, que esses 60 milhões calculados nos estudos de “retorno” eram, na verdade, virtuais. Mesmo que estivessem bem calculados, eles refletiam ganhos não apenas subjetivos e difíceis de mensurar, mas sobretudo inúteis para o orçamento de quem investia: a Câmara. Ou seja, dos cofres de onde sairiam os três milhões, não entrariam os 60 anunciados nos estudos, pois eles se dividiam pela economia local e por ganhos de imagem, mas não em receita municipal. E foi entendido que o Município não podia amputar outras políticas municipais, em nome de um “retorno” difuso de um único evento.

Como nem todos entendiam esta linha de raciocínio, usei uma imagem mais impressiva. Questionei, usando o argumento do “retorno”, por que razão não propúnhamos então a realização de um Grande Prémio de Fórmula 1 no Porto? Seguramente o investimento seria maior, mas o “retorno” atingiria números ainda muito mais impressionantes. Foi reconhecido pelos meus amigos adeptos do automobilismo que, se calhar, nem todos os investimentos públicos podem ser feitos…

Ora, no caso da JMJ falta tudo. Falta esta ponderação no investimento, mas também transparência para com os eleitores e falta verdade. Ainda há poucos meses assistia na televisão a um desfile de políticos no recinto do evento, negando aos jornalistas os números e até a informações sobre quem iria, do lado público, fazer que investimentos.

Mas nada disto é novo. Recuemos a 2004, ano em que dois dos mais pobres países da Europa organizaram dois grandes eventos internacionais, exatamente contando com a equação realizada em convenientes “estudos” dos quais resultavam números cósmicos de “retorno”. Na Grécia entendeu-se ser vantajosa a realização em Atenas de uma edição dos Jogos Olímpicos. E em Portugal fez-me o mesmo raciocínio relativamente ao Campeonato da Europa de Futebol.

O contra factual não é possível. Mas a esta distância, alguém acredita que Portugal e Grécia são assim tão diferentes e tão mais atrativos por terem realizado o Euro 2004 e os Olímpicos? Sabemos que ambos continuam na cauda da Europa e com níveis insuportáveis de dívida pública. Isso é certo. É que quatro ou cinco anos após esses grandes eventos de 2004, ambos estavam à beira da bancarrota e isso significou um retorno civilizacional para negócios, direitos sociais, ordenados e qualidade dos serviços públicos que perdura até hoje.

Há outra coisa que sabemos. Que as obras feitas na Avenida da Boavista no início do Século para viabilizar o Circuito da Boavista, iam alegadamente servir também para a futura linha de Metro que ali haveria de passar. Tal como o “altar-palco”, era, portanto, investimento que ficava e serviria para outros efeitos. Ora, 16 anos depois, não há linha de Metro na Boavista. E também não há planos para a lá pôr.

Também nos disseram que os estádios construídos para o Euro 2004 eram um investimento nos clubes e no desporto das cidades portuguesas. Mas sabemos hoje, 18 anos depois, que metade deles sempre estiveram desocupados ou quase abandonados e que nunca tiveram realmente utilidade, representando um insuportável peso para as respetivas autarquias. Sabemos também que o prometido paradigma do desenvolvimento desportivo não se verificou. Académica de Coimbra, União de Leiria, Sporting Farense e Beira Mar, equipas que então estavam na primeira divisão e supostamente iriam beneficiar destes estádios, despencaram nos anos seguintes para divisões secundárias.

E na Grécia, basta fazer uma pesquisa no Google e procurar pelos estádios, piscinas, ginásios e centros de treino construídos para os Jogos Olímpicos para percebermos a sua total inutilidade, o seu abandono e triste degradação.

Numa cidade ou num país, o critério para o investimento público num evento nunca pode ser o do “retorno”. Muito menos o “retorno” anunciado nos estudos que contabilizam ganhos de imagem e tempos de exposição televisiva e aceitam como promoção a um País a exibição da cara do Papa enquanto celebra uma missa, mesmo que o Santo Padre esteja a falar da pobreza em que vivem mais de dois milhões de portugueses…

Para uma cidade ou para um país, a avaliação primeira sobre um investimento tem de ser a avaliação sobre se há dinheiro para pagar festas “espaventosas” e se, de seguida, é possível explicar aos cidadãos aquele custo, assumindo que outros serviços vão ser cortados para viabilizar aquele.

No caso presente, salta à vista que Portugal não tem justificação política para fazer este investimento. A novidade desta vez é que nem tentou explicar por que razão vai gastar mais de 160 milhões de euros públicos em palcos, terraplanagens e casas de banho que, sejamos francos, no futuro não se prova que servirão para alguma coisa. E a melhor demonstração que não há dinheiro nem justificação política para tudo isto, é mesmo ter deliberadamente escondido os custos, como fez a Grécia com os Jogos Olímpicos em 2004 e que tanto contribuiu para o descrédito dos “PIG´s” e para a crise das dívidas soberanas, que hoje ainda nos corta como uma espada.