A conjugação da percepção pública de falta de autoridade dos poderes políticos, da falta de rigor do sistema judicial, do comportamento das polícias, da situação muito difícil face à habitação e à remuneração de um número alargado de famílias, das dificuldades que atravessam órgãos de comunicação social, são, entre outras, circunstâncias imediatas (no quadro mais geral de tendências de contexto que não são favoráveis) que deviam suscitar um alerta maior a responsáveis públicos e privados e à população em geral.

A situação difícil e complexa vivida, amplia os efeitos de cada evento específico que possa contribuir para desequilíbrios ou agitação.

Os termos em que ocorreram a queda do governo da República e do governo da Região Autónoma da Madeira e antes, a devassa da casa de Rui Rio e da sede nacional do PSD; o modo como, sucessivamente, o juiz Ivo Rosa foi desautorizado pelos seus pares no processo Sócrates, entre tantos outros exemplos, mostram que o sistema de justiça não está a lidar bem com o sistema político. Pode ou não haver dados que levam o Ministério Público ou a Magistratura Judicial a ter fundadas razões para agir ou não agir em certas situações. Mas quando as mesmas envolvem altos titulares de cargos públicos, por maioria de razão, a ação precisa de ser demonstrada de forma inequívoca, em termos de fundamento legal. Não por “os políticos” serem mais que os outros cidadãos. Mas pelo impacto que a ação dos poderes judiciais sobre os políticos têm na comunidade como um todo.

A lei diz que a constituição do estatuto de arguido implica “razões fundadas” e que a prisão preventiva implica “fortes indícios da prática de crime doloso”. Onde estão as “razões fundadas” da queda do governo nacional (por mais que tenhamos assistido a constantes trapalhadas no que respeita à sua organização interna e desempenho), passados mais de três meses depois do comunicado da PGR que levou à queda do Governo Costa? Não sabemos. Como é possível que o ex-presidente da Câmara Municipal do Funchal e dois empresários tenham estado detidos 21 dias e depois sejam libertados por um juiz que não considera ter encontrado indícios de crimes praticados pelos mesmos? Não sabemos. Como é que as razões que levaram à devassa da sede do PSD e à casa de Rui Rio – despesas do partido e do grupo parlamentar do partido – e que são similares a diversos partidos políticos só visaram o PSD? Não sabemos. Como é possível que um juiz – Ivo Rosa – que, sucessivamente, foi desautorizado nas decisões que tomou, relativamente ao processo Sócrates, por não respeitar os parâmetros legais a que estava obrigado -de acordo com juízes de instâncias superiores que analisaram as suas decisões – é promovido a juiz desembargador? Não sabemos.

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Sabemos que há corrupção, abusos de poder, fraude, branqueamento de capitais, a afetar vários níveis de poder. Sabemos que são crimes de prova difícil. Sabemos que é preciso melhorar os instrumentos jurídicos (como a delação premiada, por exemplo) para tornar mais ágil e eficaz o combate aos chamados crimes de colarinho branco.

Mas as deficiências do sistema normativo (que levam à dificuldade de fazer prova dos crimes) não podem ser supridas ou aumentadas por decisões onde o risco de descrédito do sistema judicial são elevados ou pela existência de antagonismos pessoais ou corporativos entre as magistraturas ou dentro das magistraturas.

Às vezes, pode-se pensar que o “quero, posso e mando”, agora, está nas mãos de alguns justiceiros (que não é o mesmo que um sistema judicial). Um “quero, posso e mando” cheio de vontade de estrelato, de que os fenómenos de fuga de informação – inaceitáveis – levam a que televisões filmem, em direto, as buscas em casa do presidente de um partido político ou que jornalistas do continente viagem para a Madeira para acompanhar, em direto, o pequeno exército de inspetores que, pelas mãos das Forças Armadas, voou para o Funchal para as buscas que levaram à queda do governo da Madeira.

Não bastavam os problemas estruturais do sistema de justiça, com os seus crónicos atrasos, os expedientes processuais, as greves, as falhas informáticas, o estado das instalações dos tribunais

Em democracia, lutar por um sistema judicial que possa prevenir e combater os abusos e a desonestidade de políticos e da agentes da administração pública é importante – como também é importante credibilizar e valorizar a função política e administrativa, erradicando as injustas generalizações.

Mas, hoje, onde está o sentido da justiça? As respostas às perguntas e dúvidas que muitos temos?

Se, por um lado, é importante confiar e esperar que todo o alarme social provocado, ultimamente, pelas magistraturas, tenha justificação em tempo útil, por outro não é pedir demais que se reveja atitudes, procedimentos e seus impactos.

Afinal, a Justiça é um pilar essencial da estabilidade de qualquer regime. Se esse pilar demonstrar, face aos outros poderes e face à comunidade, não merecer confiança – pelos métodos e pelos resultados – temos todos um problema. Que a justiça seja justa, é só o que se pede, o que se exige.