A crescente presença de turistas nas áreas centrais de Lisboa – com realce para os bairros históricos – a que se junta a mais recente, mas intensa, manifestação deste fenómeno no Porto, tem sido objecto de debate na imprensa e nos meios académicos, envolvendo a política local e o sector do turismo.
A opinião dominante enfatiza os riscos desta tendência, apontando casos de difícil convívio com a população local – levando até à expulsão dos residentes –, de pressão sobre o espaço público, de descaracterização cultural, ambiental e funcional, de ameaças ao património, de especulação sobre o edificado, de inflação de preços, em suma, de perda de identidade.
Surgem inevitáveis comparações com situações extremas de pressão turística em áreas urbanas históricas na Europa, como Veneza, Barcelona ou Amsterdão, discutindo-se as medidas de regulação adoptadas naquelas cidades.
Por não me rever nesta linha de pensamento, creio que importa compreender alguns aspectos essenciais na situação de Lisboa e Porto quanto à relação com o turismo e, mais profundamente, quanto às dinâmicas urbanas que têm moldado estes territórios.
Não descartando alguns dos eventuais riscos apontados, verificamos, olhando os números, que a pressão turística em Lisboa e no Porto não é comparável com as situações extremas que se vivem nos principais destinos do “turismo de cidades” na Europa. Mais importante, ao contrário da expulsão anunciada de residentes ou funções centrais características, o que realmente está a suceder nas áreas centrais de Lisboa e Porto é o preenchimento de um vazio criado por décadas de abandono – por habitantes, investidores e funções centrais – e de políticas públicas inadequadas e perversas.
Sobre este abandono, algumas notas. A questão demográfica é alarmante desde há muito nos centros das cidades, com o esvaziamento populacional e o envelhecimento acentuado dos que permanecem a ser evidenciado em cada censo. O êxodo tem causas complexas, que vão desde o desajuste das condições de habitabilidade às aspirações actuais, aos novos padrões espaciais de consumo e de mobilidade, num contexto de clivagem de valores culturais, de tensões económicas, de novos modos de viver a cidade. Importa notar que, até há pouco, a questão habitacional não encontrou resposta numa reabilitação do parque edificado, a que o sector da construção nunca soube, ou quis, responder adequadamente.
A centralidade destas áreas urbanas, no sentido funcional do central business district, mas também em sentido simbólico, esbateu-se perante o emergir de novas “centralidades” periféricas, alimentadas pela transferência de população, por novas lógicas de localização empresarial, por um novo modelo de acessibilidades, enfim pelo desvio do investimento para a formação de uma massa crítica centrífuga.
Perante a quebra de competitividade no contexto urbano e o desaparecimento da população local, o comércio tradicional foi perdendo o seu mercado e razão de ser, mantendo-se ainda assim mais do que seria expectável, graças ao efeito de subsidiação pelo controlo administrativo das rendas. Nas últimas décadas era evidente o declínio e degradação do comércio local, ocorrendo com crescente frequência a substituição por unidades cada vez mais desvalorizadas.
Quanto à acção do Estado, a política dos solos tem, essencialmente, vivido de costas voltadas à cidade consolidada, olhando sobretudo para a urbanização e para as dinâmicas da transformação do uso do solo. O beneplácito à expansão urbana, bem como a política de acessibilidades e de obras públicas, se por um lado se colaram ao êxodo populacional, por outro alimentaram o modelo de suburbanização que esvazia e corrói as nossas cidades e compromete a sustentabilidade do território.
De notar que, no que concerne à política habitacional, as autarquias locais, dos maiores detentores de património imobiliário no interior das cidades, raramente utilizaram o potencial estratégico desta posição, antes contribuindo com as suas iniciativas para o alastramento das periferias. Também a intervenção administrativa no arrendamento urbano, tardiamente reconhecida como um dos fortes mecanismos de destruição de valor e de produção de assimetrias nas áreas centrais, não foi desmontada em tempo com a coragem e inteligência que se impunha.
Importa ainda referir outro domínio da acção do Estado, o da política cultural, que contribuiu, por incompreensão da problemática do património urbano e das suas dinâmicas, para este cenário negativo. Basta um passeio por qualquer área histórica central das nossas cidades, mesmo as reconhecidas pela UNESCO, para atestar a incapacidade das políticas dirigidas ao património imóvel em cumprir os seus objectivos, nomeadamente para evitar o colapso do edificado e a desertificação populacional e funcional que lhe subjaz.
Durante este longo processo de perda nas áreas urbanas centrais, onde estavam os que agora reclamam a necessidade de regulação urgente das transformações induzidas pelo turismo? O cenário descrito deveria ter merecido uma reflexão sobre as causas profundas dos problemas do património urbano, em vez da crítica redutora das poucas dinâmicas positivas que aqui se manifestam.
Um importante agente para esta reflexão, a academia portuguesa, há muito que optou por focar a investigação sobre a cidade na urbanização periférica e nos modelos e processos da “cidade nova”. Apenas agora esboça algum interesse pela dita “reabilitação urbana”, preocupando-se, no entanto, sobretudo com os riscos das dinâmicas emergentes, como a muito temida e pouco compreendida “gentrificação”.
Neste panorama de abandono generalizado, a chegada do turismo veio trazer um muito necessário antídoto, manifestando-se na atracção de investimentos, na reabilitação do parque edificado para fins viáveis, na recuperação comercial e no alargamento de horários, na fruição do espaço público, na recuperação de equipamentos culturais, na recomposição – e não a substituição – de uma nova base económica e social local, ou seja, na promoção de condições de sustentabilidade urbana.
Estas alterações e o afluxo e apreço manifestado às cidades de Lisboa e Porto pelos turistas contribuem para quebrar um ciclo e para alterar a percepção de valor das suas áreas históricas centrais pela própria população da cidade metropolitana, que aqui passa também a acorrer e a reapropriar-se de espaços que antes desertara. A crescente procura destes bairros para habitação é disso bom exemplo.
A resiliência das cidades históricas apoia-se na continuidade dos seus valores identitários, mas depende da capacidade de integrar a mudança e de assimilar novas narrativas. A sua história está sempre a ser escrita em novos capítulos, querer fixá-las num momento romantizado do passado é não compreender a sua essencial natureza.
As dinâmicas induzidas pelo turismo são um elemento catalisador, uma oportunidade que pode fomentar a regeneração urbana. Acrescento que este fenómeno tem outro grande mérito, nunca suficientemente valorizado: ao contrário do que é uso entre nós, trata-se de um processo orgânico e suportado por mecanismos de mercado, não dependendo de injecções maciças de dinheiros públicos para se concretizar.
Arquitecto e urbanista, professor do ensino superior