No longínquo ano de 1974, quando em Portugal ainda se decidia se se queria instalar uma ditadura soviética ou uma democracia ocidental, no Reino Unido os Monty Python criavam um sketch onde dois homens vestidos de mulheres falam entre si, e uma pergunta à outra o que tem feito. À resposta “Fui às compras comprar um motor de pistão”, a primeira volta à carga e insiste: “Mas para quê?”. “Bem, foi uma pechincha…” é a resposta.
Já os antigos gregos, de toga e em tardes lânguidas discursavam sobre axiologia, tentando concluir sobre a filosofia do valor (e dos valores). Mais tarde, a economia gerou escolas de pensamento sobre “o valor” e como isso poderia ajudar a definir variáveis como o preço.
Os economistas, têm discutido profusamente sobre métodos de medição do valor de um bem (ou de um mal) – até porque o método de medição pode sempre ser o modo mais direto de os números e as análises nos darem as respostas que queremos quando colocamos questões.
Se os clássicos identificavam facilmente o valor como um “valor de uso”, no caso da utilização própria do bem, ou um “valor de troca” para o caso de num negócio se obter algo ao ceder o bem, as teorias do valor têm evoluído para considerações com mais nuances, tendo-se compreendido que a valorização tem uma elevada componente humana, e por isso pode não ser totalmente rigorosa e exata, mas mais subjetiva e por vezes abstrata. Para simplificação, os economistas adotaram o conceito de “utilidade” – como que um cabaz de conceitos de valor, de modo a não haver necessidade de definir conceitos indefiníveis, e assim se criar uma base de consenso onde se pudessem construir estruturas teóricas sem que alguém se lembrasse de dizer que “2 pães mais dois pães não são 4 pães, porque eu estou de dieta, não como pão, e não vou querer nenhum deles!”.
Esta incapacidade de gerar consensos para que as discussões tenham mais profundidade parece ser característica dos nossos tempos e impede-nos de, além de ter conversas civilizadas, de conseguir aproximar as posições no que possam ser aproximáveis, fugindo ao conflito originado em diferendos acessórios – tendo sempre presente que conceber que podemos estar errados é o princípio para se compreender o outro.
Creio haver um certo paralelismo entre esta necessidade de compreensão de que o nosso enquadramento teórico é falível e que há grande falta de bases comuns, e o meme em que já se tornou a afirmação de um jornalista sobre segurança e a perceção de segurança. Um pouco como a máxima de que “a economia está boa, as pessoas é que não” ou o clássico “se eu comer um frango e tu nenhum, na média tu comeste meio”, a afirmação de que “a sensação das pessoas de que há atualmente menos segurança não está em linha com a realidade dos factos” padece de inúmeros males.
Nos sites de verificação de factos muito foi dito sobre esta nuance, realidade vs sensação, principalmente para reforçar a suposta situação paranóica da populaça que, ignara, não percebe nem valoriza a nação onde está instalada. Tentei, agora com alguma distância, perceber melhor do que se poderia estar aqui a falar.
Uma referência utilizada é o site CEOWorld. Só o nome, deixa qualquer um a questionar-se se o fato e a gravata que têm vestidos são dignos de frequentar tal local. No ranking deste site, cujos separadores mais importantes são “Best CEOs” e “Billionaires” Portugal alcança o #12 lugar, logo abaixo de Singapura, país que a Amnistia Internacional critica frequentemente por desrespeito pelos direitos humanos, nomeadamente por manter a pena de morte para traficantes de droga. Questiono-me se um país onde a vida vale tão pouco às mãos do Estado será a melhor companhia num ranking. O site não apresenta a metodologia usada para esta ordenação, mas é provável que tenha sido através de inquéritos a CEOs, ou outro método infalível.
Outra notícia que surge nas pesquisas é o da Forbes e o ranking da Berkshire Hathaway. A Berkshire Hathaway é um conglomerado financeiro onde se destaca a sua seguradora, e tem como CEO Warren Buffett (há sempre um CEO…). Warren Buffett é um famoso multimilionário americano que surge com frequência na lista da Forbes dos mais ricos do planeta. Parece uma porta giratória, mas não, é apenas uma sensação. Neste ranking estamos também em #12, mas este avalia principalmente a segurança de turistas – na prática é isso que preocupa uma seguradora americana, o risco de um turista passar por problemas quando no estrangeiro. Não creio que um inquérito que tem como base inquéritos a viajantes possa refletir rigorosamente o ambiente de segurança numa nação.
Por fim, há o muito referenciado Global Peace Index (GPI). Este índice é apurado pelas Nações Unidas, o que lhe atribui de imediato um prestígio particular. É, no entanto, uma pena que se utilize uma métrica de paz para medir segurança. Além de ser um desperdício de uma boa métrica, gera certamente conclusões erradas como medir um perímetro com uma balança ou temperatura com uma régua. O GPI agrega informação relativa a cada nação incluindo variáveis como “conflitos internos” (não estamos a falar do conflito interno “devo comer, ou não, mais um quadrado de chocolate?”, mas sim guerras civis), “mortes por conflitos no exterior” ou “duração do envolvimento em conflitos”. Também há um conjunto de métricas sobre militarização onde os investimentos em armamento ou a percentagem de militares na população concorrem logicamente de modo negativo para o índice de paz – se bem que pela lógica do mundo poderia até teoricamente contribuir positivamente para uma métrica de “segurança”.
Uma vez que não fiquei muito convencido com os ilustres estudos estrangeiros, procurei no mais doméstico Pordata informação que me auxiliasse como base de análise. Aí, chega-se à conclusão de que em 2023, com o seu aumento de 5,8%, se atingiu o valor mais elevado em 12 anos nos crimes contra pessoas. Podendo não ser um máximo histórico, para as vítimas desses crimes e pessoas que lhes são próximas, é certamente algo marcante e socialmente alarmante.
Esta tendência de subida é referida no Relatório Anual de Segurança Interna 2023 para algumas tipologias de crimes como a criminalidade grupal, a delinquência juvenil, ou a extorsão. Apesar de, comparativamente, podermos continuar a viver num país genericamente seguro, certamente que a tendência sentida, e em particular aumentos súbitos, pode gerar uma avaliação que não seja estrita e matemática, mas genérica e percecionada.
A afirmação de que a sensação individual de insegurança é um delírio de negacionistas da segurança começa numa desvalorização pelas preocupações potenciais de cada cidadão, e acaba numa desvalorização da experiência prática e individual da população.
A segurança, não tendo uma métrica universal para comparação rigorosa, estará sempre e naturalmente sujeita a interpretações, discussões sem possibilidade de base comum, e votada a uma incapacidade de ser consensual. No entanto, e exatamente por esta circunstância, é importante ter em consideração que a experiência, a perceção, o sentimento de cada um é altamente variável e influenciável pelas vivências pessoais.
Como a felicidade, a corrupção num país, ou o valor de um bem, a segurança sentida por um jornalista herdeiro de privilégios, sentado num estúdio de tv e sem ter de frequentar um comboio à noite no inverno, ou a rua num bairro sem policiamento, nunca será semelhante à generalidade dos cidadãos anónimos.
Será preciso percorrer o caminho longo e que se entenda que, mesmo podendo haver quem beneficie com sentimentos de insegurança e é legítimo combater esse aproveitamento, será sempre mais benéfico ter uma métrica rigorosa para que se possam discutir temas com fundamento e comparabilidade verdadeira, ou descer do altar, percorrer as ruas e falar com o cidadão na rua, que terá muita sabedoria e conhecimento a passar.