Gosto particularmente de uma musica de Natal, o “little drummer boy”, ou em português o “menino do tambor”, e gosto sobretudo da sua versão espanhola “El tamborilero” de Raphael.
A letra desta música conta a história imaginária de um menino pobre, que ganha a vida a tocar um pequeno tambor. Não tendo nada para dar de presente ao Menino Jesus na noite de Natal, o pequeno artista dedica-lhe uma serenata com o seu instrumento – e o Menino Jesus, acabado de nascer, olha-o nos olhos e sorri de alegria, tornando esta canção numa verdadeira ode emocional, obrigando-nos a reflectir sobre o significado dos verdadeiros presentes para o sentir!
A dimensão do presente é sempre medida pelo amor que nele se coloca.
Mas nem sempre é assim connosco. As prendas que oferecemos são muitas vezes oferecidas de forma quase mecânica. Oferecemos o que compramos, procurando sempre uma prenda fácil, porque achamos giro, porque o seu custo pode impressionar e esquecemo-nos de colocar na prenda o amor que queremos e devíamos demonstrar.
Quantas crianças escrevem cartas que são autenticas listas de presentes? Escrevem porque querem tudo, sem poderem ter depois a capacidade de brincar com nada. Nesse aspecto os bebés até ao seu primeiro ano são os mais puros. Recebem dezenas de brinquedos e ao que acham piada é a uma garrafa de plástico que está vazia.
Quantas crianças querem este mundo e o outro, simplesmente porque essa é a altura em que sonham. E por vezes o sonhar é só uma forma de ter o que não podem ter. De sonhar com o brinquedo que nunca terão. E para essas crianças o amor dos pais é muitas vezes fazedor de milagres.
Mesmo com pais de poucas posses, quantos não sonham com uma camisa oficial de futebol do Cristiano Ronaldo e são depois brindados com uma réplica comprada numa loja de chineses. Mas é com essa camisola que saem para a rua no dia seguinte, independentemente do frio que está, orgulhosos e decididos a marcar o melhor golo no futebol de rua.
Existem outras crianças que têm tudo, que recebem tudo, mas que depois não têm nada. Recebem a camisola oficial do Benfica ou do Sporting, com o nome estampado, mas depois fica perdida entre outras tantas prendas e nunca serve para o jogo de futebol na rua de baixo.
E o que dizer dos pais entre eles.
Casais que compram prendas caras e vistosas um ao outro na esperança de que a pulseira, ou os brincos compensem a ausência do sentir que já não conseguem ter ou fazer ter. Do relógio que marca o tempo que nunca dão ao outro para se encontrarem. Essas prendas surgem na esperança de comprar a atenção um do outro, na certeza, porém de que o amor comprado nunca é realizado, simplesmente cobrado. Equiparam o que acham que sentem ao preço da prenda que dão.
Outros casais realizam-se na oferta de uma esferográfica com uma simples mensagem na mesma ou numa singela estrela de Natal ou até mesmo num sabonete em forma de urso que custa menos de trinta cêntimos, sabendo que essas prendas por mais insignificantes que sejam, transmitem o valor do que sentem para quem a recebe. E quem as recebe percebe o amor que nelas está implícito. São as prendas que não se esquece.
Existem prendas de marca, e depois existem as prendas que marcam. Pessoalmente prefiro receber as prendas que marcam…
E as prendas dos filhos. Neste caso ou são as prendas compradas por um progenitor para serem dadas pelos petizes, e cuja qual é quase sempre a pedido de quem recebe. Valem o valor da vontade em receber o que se pediu, sem os miúdos muitas vezes sequer saberem o que dão. Depois vem a prenda feita. E o que dizer da prenda feita dos filhos para os pais. Uma certeza tenho, todos os pais sentem-se orgulhosos da que recebem dos filhos, seja uma carta ou um simples postal, mesmo ambos tendo erros de português, ou desenhos pouco claros onde o pai careca ganha cabelo, ou uma mãe baixinha se torna muito mais alta do que é na realidade. São estas as prendas que nos deixam saudades das diferentes etapas do crescimento dos nossos filhos. São também verdadeiros presentes de Natal.
As avós competem entre si para mimar os netos. Relegando os filhos para um quase segundo plano. Os avôs são mais parcos no Natal. Os avôs, esses tornam o Natal sempre que saem com os netos. Seja na compra de um gelado ou chocolate dado às escondidas dos pais.
Volto ao pequeno ‘tamborilero’, e recordo-me de um conto de Natal de Sophia de Melo Breyner Andersen. A história de uma menina rica, sem amigos, que começa a conhecer e a conviver diariamente com um menino pobre com quem trava amizade. A amizade nasce e não mais acaba. É a história da Joana e do seu amigo Manuel. Ela rica e sem falta de nada, ele pobre e com tudo. O conto relata a história da bondade da Joana, que na noite de Natal, após a descrição da vida de Manuel pela sua empregada, constata que ele é pobre e que não irá receber presentes. Nessa noite, aquando da Missa do Galo, sozinha, sai de casa carregada com os seus brinquedos, acabados de receber. Leva então tudo. (ou quase tudo, pois, deliciosamente, nos seus pensamentos acha que o Manuel, rapaz, não irá achar graça às suas bonecas). Nessa viagem cruza-se com os reis magos e eles juntam-se a ela, guiados por uma estrela até ao local onde constata que o Manuel é Jesus.
Tal como o pequeno músico, também a Joana reflecte o melhor que podemos ser.
Nesta altura de Natal, todos, todos, todos deveríamos por os olhos nesses dois pequenos exemplos. Devíamos oferecer o melhor de nós.
E o melhor de nós é simples. É o tempo que arranjamos para abraçar, para sentir, para marcar o outro. Para sermos nós a bondade. E só seremos ou voltaremos a ser a bondade quando somos o que sentimos e não o que temos. Quando recuperamos os nossos dois nomes próprios em detrimento do título que ostentamos antes do nosso apelido.
Os nossos governantes e decisores políticos deviam pensar menos no serviço que fazem e mais em quem servem. Deveriam ser capazes, sobretudo, nesta época de Natal de terem a capacidade de sentir as dores e os anseios dos pobres que são cada vez mais. Dos que fazem um esforço para dignificar o jantar de natal, por muito parco que seja. Deviam preocupar-se menos com as ‘websummits’ e mais com o SNS, menos com a candidatura à organização de um campeonato europeu de futebol e mais com a habitação e educação. Deveriam gastar menos e de melhor forma e fazer mais. Deviam preocupar-se menos com o acessório e mais com o essencial.
Recomendação de leitura: “A Noite de Natal” de Sophia de Mello Breyner Andresen
Recomendação musical: “El pequeño tamborilero” de Raphael | “little drummer boy” de David Fonseca