Sob os cristãos recai uma condenação fatal: a exigência de uma curiosidade e de um interesse omnívoro. A partir do momento em que Cristo viveu a Humanidade na sua totalidade, Deus está tão presente numa elegia de Hölderlin como numa música dos Capitão Fausto.
Infelizmente, num tempo em que se criticam tanto os tudólogos, os cristãos não têm outra solução. Vivem destinados a este apetite voraz, a esta atenção desmedida, onde cada pessoa, cada lugar e cada hora pode ser um momento de revelação. E, o desporto não é exceção.
Podemos encontrar tão de divino na imensidão de um deserto, como num drible de Roberto Baggio ou numa final de Wimbledon. E muito embora falar de desporto em público ou assumir a filiação clubística de forma clara, ainda ser visto com alguma desconfiança, tudo isto é mais que um assunto menor, um desperdício de emoções ou o pão dos pobres.
O desporto, o futebol, e esta infinita capacidade da humanidade multiplicar as formas de competir e jogar entre si é, acima de tudo, uma antropologia. E como sportinguista, sem vergonha ou pudor, seria ridículo tentar escrever hoje sobre outra coisa senão sobre Rúben Amorim.
Se os políticos não são todos iguais, os clubes também não o são. E, não o são por exemplaridade moral de uns face a outros. São-no, acima de tudo, por modo de amar. Em geral, parece-me que se ama o Benfica com enfuria, o Porto com resistência e o Sporting com tristeza. Quando um jogo começa em Alvalade, os cachecóis se erguem, e se ouve uma música que tanto parece uma declaração de amor, como uma despedida, o que une os adeptos é bem mais do que uma alegria decidida, é uma saudade antecipada.
Ama-se o Sporting com tristeza, mas com Amorim essa tristeza tornou-se uma tristeza bonita, cheia de orgulho e de raiva.
Quando Rúben entrou em Alvalade, o Sporting parecia um romance policial onde o detetive tardava em chegar. Com ele, podemos passar a acreditar que o enredo, mesmo que incerto, pode ter um sentido.
Curiosamente, a notícia do interesse, quase sem recurso, do United em Amorim apanhou-me no momento em que lia um ensaio da The Atlantic sobre a oposição entre George Washington e Donald Trump. Nesse momento, foi difícil não ver em tudo o que no primeiro é excecional a imagem desse homem que, sentado no banco, tantas vezes se assemelhava ao pensador do Rodin.
Washington, o homem a quem, como Alexander Hamilton escreveu, “o mundo oferece incenso”, recusou ser um César. Teve a possibilidade real de se tornar um monarca absoluto e recusou. Podia ter participado numa revolta para derrubar o Congresso, mas em Newburgh repreendeu duramente os seus soldados quando essa ideia começou a rondar o acampamento militar. Quando foi nomeado comandante do exército continental, via esse momento como o “início da queda e da ruína da sua reputação”. E, mais tarde, quando podia ter transformado o exército numa milícia pessoal, esclareceu, sem deixar margens para dúvidas, que “quando assumimos o lugar de soldado, nunca deixamos de lado o lugar cidadão”.
De modo semelhante, aquilo que marca o percurso de Amorim em Alvalade é, acima de tudo, o tanto que recusou. Recusou instrumentalizar o carinho dos adeptos a seu favor. Recusou deixar de lado o autocontrolo por meia dúzia de aplausos. Recusou agir como alguém que está acima do clube. Recusou que “o orgulho se solidificasse em arrogância, e as inseguranças se transformassem em autoindulgência”.
São quase dois séculos e meio que separam Washington e Amorim, mas sem querer ser ridículo – e se o for, não tenho problema com isso, porque o desporto também serve para ser ridículo sem necessidade de autorização – há algo que os une: a renúncia da tirania, da demagogia e do populismo. Nenhum dos dois alguma vez se atreveu a dizer: “eu não assumo qualquer responsabilidade”. Nenhum embarcou numa espécie de turné de vitória pelos seus fãs, rejeitando todos os outros. Nenhum ousou denominar os inimigos e adversários como “vermes” e “escória”. E, nenhum olhou para “soldados caídos” como “perdedores”. E, por isso, como talvez já seja tarde para agradecer a Washington, aqui fica: Amorim, muito obrigado.