Giovanni Pietro Caraffa, nascido em Roma em 1476, tornar-se-ia, em 1555, no Papa Paulo IV. Se existem, de facto, homens da igreja que se notabilizaram por serem grandes mecenas e por terem impulsionado a arte do seu tempo apoiando artistas jovens e impetuosos, caso da relação profícua, mas conflituosa entre Júlio II e Miguel Ângelo, outros existem, porém, que se notabilizaram pelo espírito inquisitório e moralista. Pietro Caraffa é o exemplo perfeito destes últimos. Herdeiro do Consilium de emendanda ecclesia lançado pelo seu antecessor Paulo III, Caraffa aplicou as recomendações desta comissão a uma verdadeira campanha de higienização moralista da arte. O mais significativo alvo desta campanha absurda foi o grande Juízo Final que Miguel Ângelo havia concluído em 1541, curiosamente, a pedido do próprio Paulo III. Para tal, Caraffa encarregou o pintor Daniele Ricciarelli, mais conhecido por Daniele da Volterra, de vestir todas as personagens que povoavam o grande fresco da Sistina, acção que lhe valeria a alcunha definitiva de Il Braghettone. É certo que tanto Paulo III como Caraffa, aliás, Paulo IV, viveram os conturbados anos da Reforma e subsequente Contra- reforma. Urgia dar resposta à visão generalizada de uma Roma imoral e corrupta que Erasmo de Roterdão havia caracterizado em 1508 no seu Elogio de Loucura com especial mordacidade para a exuberância artística que povoava a cidade eterna: “Quem entusiasma os homens a descobrir, a legar aos seus pósteros tantas produções na aparência excelentes, a não ser a sede de glória? Julgaram esses homens, em realidade, bastante estúpidos, que não deviam poupar nem velas nem suor, nem esforços de cansaço para conquistar não sei que espécie de imortalidade, a qual não é outra coisa, em última análise, do que uma formosíssima quimera”. Tanto Caraffa como Paulo IV foram reféns do seu próprio tempo, peões de um eterno jogo de causa-efeito, que a história constantemente revela.

Esta breve história serve de pano de fundo a mais uma polémica em torno da moralização-higienização moral dos objectos artísticos, fenómeno que se impõe, infelizmente, com cada vez mais frequência. Não sabemos se Caraffa terá ordenado que se cobrissem todos os exemplares “mais ou menos pornográficos” do Juízo Final, mas foi com esta argumentação vetusta que 37 signatários classificaram a obra em questão – uma escultura de Camilo Castelo Branco abraçado a uma mulher nua – da autoria do escultor Francisco Simões. O ímpeto higienista típico da cultura de cancelamento que vigora encontra-se claramente explicitado na referida petição, pedindo-se a Rui Moreira o “favor higiénico de mandar desentulhar aquele belo largo de tão lamentável peça”. Já o espírito do Cardeal Caraffa reside claramente naquilo que os signatários afirmam ser uma clara “desaprovação moral” pelo modo como a mulher se encontra representada. Um terceiro argumento invoca o “desgosto estético” que a obra produz. Nenhuma destas questões parece preocupar a vereadora Ilda Figueiredo, também ela signatária da petição, mas tão somente “a maneira como o homem e a mulher são tratados”. Para a vereadora, Camilo deveria surgir despido, considerando certamente que o corpo nu de uma mulher constitui um ultraje visual. Ilda Figueiredo parece possuir, segundo a visão de Erasmo, duas línguas, uma para exprimir aquilo que pensa e a outra “para falar de acordo com as circunstâncias”. Procura não se comprometer com qualquer julgamento moral ou estético, ficando-se apenas pela vaga e absurda paridade da nudez representada. Felizmente, nenhum dos peticionários parece ter invocado o conceito de «beleza» para justificar a remoção da obra. Tal argumento seria, a par com as questões morais, absolutamente risível.

As questões da moral e da beleza na arte, pertencem, de facto, a outro tempo. Mal comparando, estes “ilustres cidadãos” portuenses parecem enfermar do mesmíssimo mal que acompanhou os visitantes da exposição que Amadeo de Souza- Cardoso realizou no Jardim Passos Manuel em 1916. À época, o jornal «A Luta» lamentava que «a doença futurista tivesse transposto as fronteiras do nosso lindo Portugal». O jornal «A Montanha» foi mais longe invocando questões estéticas e moralistas, apelidando a exposição de «ignomínia monstruosa» e «exibição obscena». Apesar de não ser possível comparar a obra de Francisco Simões ao modernismo emergente que Amadeo evidenciava, o tom moralista parece equiparar-se.

De facto, se falar de moralidade na arte é, hoje, absolutamente anacrónico, as questões estéticas continuam plenamente válidas. E é aqui que entramos na questão primordial. Código e descodificação. É certo que para o Portugal provinciano de 1916, compreender o rasgo modernista com absoluta desenvoltura seria algo dificilmente concretizável. O código era indecifrável… Tal como afirmou Almada Negreiros no mítico Zip-Zip de1969: «ninguém nos supôs… que nascessem determinados portugueses naquele momento, de modo que, nós estávamos fora da sociedade, se é que havia sociedade”. É certo que a sociedade da época não se encontrava capacitada para descodificar as obras de Amadeo ou do grupo do Orpheu.

A escultura de Simões, por seu lado, encontra-se aberta em pleno à descodificação. Qualquer cidadão portuense que a contemple, compreenderá plenamente o seu significado. É certo que não é amplamente instagramável como compete à arte urbana actual ser. Não brilha no escuro. A escala é normal. Não tem cor… Para além do mais, enferma do grande pecado estético de ser figurativa. É legitimo que não se goste dela. Mas os signatários da petição parecem ignorar uma das maiores virtudes que arte encerra – o facto de ser permanentemente uma obra aberta. Umberto Eco revela-nos precisamente essa dimensão quando afirma que toda a obra de arte possui três intenções: a do artista; a da obra; e a do observador. A intenção do escultor já foi amplamente divulgada. Trata-se de algo que deveria ser absolutamente desnecessário a um artista repetir até á exaustão: “É claro que esta é a minha verdade e que cada um tem direito à sua interpretação, à sua objectividade (…) A unanimidade em arte não existe”. Para lá da intenção do artista e da obra, resta apenas a intenção de 37 «ilustres cidadãos» que arvoram a sua intenção como definitiva.

Importa perguntar o que diriam os “ilustres cidadãos” se no lugar da obra de Simões, estivesse o já célebre “casinhoto tosco feito com tijolos” que Pedro Cabrita Reis fez erigir num jardim em Santo Tirso? Muito provavelmente nada. Nas questões da arte, como em tantas outras, importa parecer douto e fazer parte do mainstream e do establishment artístico. Talvez Erasmo possa ensinar algo a estes 37 Cardeais Caraffa do Porto, pois sendo a arte um produto humano, possui essa qualidade intrínseca de não significar apenas uma coisa, mas tantas quantas aquelas que os que a contemplam desejarem: “Todas as coisas humanas possuem dois aspectos, à moda dos Silenos de Alcibíades, que tinham duas caras inteiramente opostas (…) e desse modo, frequentemente, o que parece a vida é morte; o que parece belo é deformidade; o que semelha rico é pobre; o infame parece glorioso; o que aparenta ser douto é ignorante (…)”.

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