O século XVI é um século decisivo na História da Europa e, consequentemente, na História do mundo, já que, até à Segunda Guerra Mundial e à descolonização, isto é, até há meio século, o mundo foi eurocêntrico.

Há quinhentos anos, dava-se a proclamação da secessão luterana em Wittenberg, em 1517, e redigiam-se dois tratados políticos antagónicos e fundacionais – O Príncipe de Maquiavel (1513) e a Utopia de Thomas Morus (1516). Poucos anos depois, batalhavam, de Marignan a Pavia, pelas terras de Itália, Francisco I, Valois, pela França, e Carlos V, Habsburgo, pelo Império. E o século que assim abria e que foi também o século de Camões, ia fechar com as mortes, no mesmo ano de 1616, de dois génios das letras, Miguel de Cervantes e William Shakespeare.

Neste tempo e neste país, mergulhados na douta e menos douta ignorância tolerada e até encorajada, é difícil pensar e problematizar outros tempos históricos e outras realidades, particularmente tempos e realidades em que Portugal foi maior do que é hoje. Até porque a pequenez reinante se dá mal com alguma grandeza passada, e procura, com aplicação, ensombrá-la.

Que, consciente ou inconscientemente, não escapemos a estender ao passado a nossa história pessoal e o nosso tempo e a sua teia de valores e princípios éticos e políticos, pode ser inevitável; mas fazê-lo para cumprir uma agenda ideológica simplista, sem qualquer pejo, conhecimento de causa ou preocupação de verdade, compreensão e rigor, é já outra coisa, e totalmente diferente. Assim, numa época em que a moda da vitimização do oprimido e da acusação e contrição do opressor cai num pântano de alienação acrítica, também aqui se tenta pintar a época das descobertas e das conquistas ultramarinas como um tempo de mera exploração, tirania, colonização, imperialismo, racismo e escravatura. E, consequentemente, os heróis desse tempo como meros exploradores, tiranos, colonialistas, imperialistas, racistas e escravocratas, a milhas de distância da tolerância, da inclusividade, da paridade, da clarividência e da superioridade moral de quem assim os pinta. Do infante D. Henrique a Vasco da Gama, de Afonso de Albuquerque a D. João de Castro, ninguém escapa.

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Em tempo de pré-celebrações, estando as forças vivas do regime, os meninos do Tuttifrutti e os fura-pneus verdes já perfilados para salvar o planeta e a democracia das energias fósseis do “iliberalismo”, há que estar particularmente atento nesta matéria. Porque uma coisa é certa: perante a novela a que vimos a assistir e a crise político-social – que as melhorias da macroeconomia podem atenuar, mas não apagam –, denegrir o passado, todo o passado, para dourar o presente é e vai ser o caminho a seguir. Às vezes exagerando, como na campanha do “Não Podias”, que teve de ser abafada, mas não pondo nunca em causa a estratégia de fundo.

Voltando ao século XVI e à sua riqueza pensante e estratégica: os humanistas críticos, como o realista Maquiavel e o idealista Morus, tiveram bem a consciência do tempo que viviam e, exaltando a liberdade dos Antigos, traçaram nos seus escritos os dilemas que se lhes apresentavam – entre autoridade e liberdade, entre monarquia e tirania, entre bem comum e maioria –, pesando os perigos do desgoverno e a tentação do despotismo.

Foi este Humanismo Crítico que dominou os primeiros anos do século XVI europeu, com Maquiavel, com Guicciardini, com Morus, com Erasmo. Um humanismo que continuou depois com Montaigne, com Cervantes, com Shakespeare. Entre os portugueses, salientou-se Damião de Goes, “estrangeirado” e viajante nos seus percursos europeus e no convívio com protestantes e outros “livres-pensadores”, o que lhe valeria alguns problemas com o Santo Ofício, instalado por cá desde 1536. Não seria o único.

Luís de Camões foi, em pleno sentido, um humanista crítico. Diz-se agora que o Estado Novo manipulou os valores camonianos para os pôr ao serviço dos seus princípios ideológicos – Deus, Pátria e Família –, e que o cristianismo e o patriotismo do poeta terão sido sobrevalorizados. Ora a realidade é que o culto de Camões e do patriotismo de Camões, incentivado por liberais como Almeida Garrett e Herculano, vinha já da monarquia constitucional e iria até ser uma das pedras de toque da campanha republicana. Em 1880, no terceiro centenário da morte de Camões, Teófilo Braga, figura importante da intelectualidade e do movimento republicano, usaria a memória do “poeta da pátria” para acusar a dinastia de Bragança de falta de patriotismo; e a República faria do 10 de Junho feriado municipal em Lisboa. Depois, a Ditadura Militar, em 1929, consagraria o dia de Camões como feriado nacional.

Apesar dos eventuais usos propagandísticos dos vários regimes, o Portugal pós-revolucionário acabaria por manter o 10 de Junho como Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas.

Jorge Borges de Macedo, nos seus vários escritos sobre os valores e as ideias políticas de Camões, diz-nos que o Poeta se integrava plenamente num Humanismo Crítico europeu que incluía um pessimista antropológico céptico, como Maquiavel, um mártir católico utópico, como Thomas Morus, e um moderado autónomo, como Erasmo de Roterdão.

Camões considerava a comunidade histórica portuguesa independente como o valor maior; o poder real como legítimo, desde que ao serviço de Deus e da Pátria; a História como o espaço temporal onde a comunidade era posta à prova; e o povo, o “povo pertinaz”, como um colectivo capaz de pedir o sacrifício da “linda Inês”, mas também de seguir Nuno Álvares Pereira, nos Atoleiros e em Aljubarrota. Para ele, a História dessa comunidade, como toda a História, não vivia sem controvérsias e resistências externas e internas: Baco é, nos Lusíadas, o inimigo jurado dos portugueses no caminho marítimo para a Índia, onde há perigos míticos e perigos reais – como a Tempestade ou o Adamastor. E os que se opõem à decisão da expansão, salientando os seus riscos (não esqueçamos que o infante D. Pedro, cujo damnatio memoriae foi consagrado por Zurara, era crítico da expansão e, mais depressa, um europeísta) estão na argumentação complexa do “velho do Restelo”, que dá voz à problemática ideológica e geopolítica da Europa e da Cristandade de então e é tudo menos um velho céptico e choramingas.

Movido por paixões, audacioso, guerreiro, marginal, soldado de Marrocos e marinheiro de dois oceanos, Camões alerta-nos para os malefícios do ouro e da corrupção apontados por Morus na Utopia; e para o dilema, tão caro aos humanistas críticos, entre o poder do Rei, essencial garante da ordem, e os perigos da tirania. E se exalta a “Santa Fé”, denuncia os sacerdotes que a traem e não a pregam; se exalta a epopeia e os seus heróis, denuncia os nobres decadentes e aconselha os novos-ricos usurários a porem “na cobiça um freio duro”. Conhece bem a cultura clássica, de Homero a Virgílio, e as várias frentes do Império da “ditosa pátria sua amada”. É um homem do seu tempo e das contradições e conflitos desse tempo, que tantas vezes a Fortuna decide.

Compreende-se que tudo isto seja areia a mais para o maniqueísmo infantil dos novos censores e para as melindrosas sensibilidades ensimesmadas dos modernos “sensitivity readers” (vigilantes leitores, num tempo em que escasseiam leitores). Talvez a dificuldade de navegar por entre o engenho e arte do Poeta para reeditar Os Lusíadas em edição expurgada salve Camões – ou então, o candidate à facilidade do cancelamento.

Porque se há censura capaz de cancelar o nosso maior poeta – humanista crítico, cristão e patriota, cujas comemorações sobreviveram a quatro regimes – é a que por aí se anuncia e prenuncia.