Lembro-me como se fosse ontem, quando eu e os miúdos da rua, com as caras cheias de entusiasmo e os sacos de pano nas mãos, saíamos pelas ruas, a bater de porta em porta. Eram manhãs frias, mas a excitação do peditório aquecia-nos. Fazíamos fila à frente das casas com as cantigas decoradas como orações e ouvia-se: “Pão por Deus, fiel de Deus, bolinho no saco, andais com Deus.”
E as portas abriam-se, às vezes devagar, com desconfiança, outras vezes com um sorriso a iluminar o dia.
Ainda me lembro da textura das sacas, feitas de retalhos cosidos pelas nossas mães para encher de oferendas. As vizinhas davam-nos broas, romãs, castanhas, e os mais generosos punham-nos nas mãos moedas ou chocolates, pequenos tesouros a fazer os olhos brilhar.
Éramos um bando de pirralhos a cantar pelas almas dos mortos, mas no fundo, cantávamos por nós, pela alegria do dia e pela inocência certa de não durar para sempre.
Passávamos de casa em casa, rindo, às vezes correndo quando algum cão nos assustava. E havia sempre o adulto a acompanhar, mais por convenção e não por necessidade, ou não soubéssemos já o caminho e as casas certas.
Nessa altura, o Pão por Deus era um dia de partilha, não era apenas a comida recebida, mas o bairro unido em torno de uma tradição a qual, embora enraizada no culto dos mortos, celebrava a vida. Havia um respeito pelas almas errantes, pelos nossos mortos sentados ao nosso lado, invisíveis, mas presentes.
Lembro-me de ouvir os mais velhos falarem do terramoto de 1755, do primeiro Pão por Deus em Lisboa, onde os sobreviventes, sem nada, foram pedir esmolas, pão para os seus, numa cidade destruída.
Mas isso são contas de outro rosário e os sacos de retalhos e as cantigas a ecoar pelas aldeias deram lugar ao “trick or treat” de crianças mascaradas de monstros e bruxas, com sacos de plástico preenchidos de doces comprados nos supermercados. Não há mais o cheiro das broas acabadas de fazer, nem o calor das castanhas assadas. O Dia das Bruxas, vindo de fora, parece ter apagado as memórias das romãs e das amêndoas a encher os bolsos e o coração e a celebração da partilha tornou-se num ritual de consumo sem qualquer memória dos mortos, apenas espectáculo.
E nós, ainda lembrados desses dias, ficamos presos numa nostalgia por compartilhar, para sempre distantes dos grupos de crianças a cantarolar, a pedir bolinhos em honra de quem que partiu. E, no entanto, o mundo gira, muda, e nós ficamos aqui, a olhar para trás, como se o tempo fosse algo passível de conter num saco de pano cheio de castanhas e broas.
Pão por Deus, disseram-me um dia. Mas Deus, agora, parece já não andar por aqui.