Na ética sexual católica defende-se que tanto os atos homossexuais, como a masturbação, ou ainda a contraceção artificial, entre outros, não são atos moralmente apropriados. Mais concretamente defende-se que “os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados (…) não podem, em caso algum, ser aprovados” (Catecismo da Igreja Católica, §2357); além disso, advoga-se que “a masturbação é um ato intrínseca e gravemente desordenado” seja qual for o motivo (Catecismo da Igreja Católica, §2352); do mesmo modo, sustenta-se que a contraceção artificial (como preservativos ou a pílula) “é intrinsecamente má” (Catecismo da Igreja Católica, §2370). Mas qual é o argumento que se apresenta para se defender tais teses? Há várias linhas argumentativas, umas mais teológicas (como a encíclica Humanae Vitae) e outras mais filosóficas (como a argumentação apresentada pela filósofa Elizabeth Anscombe). Mas, no fundo, podem-se resumir todas essas linhas argumentativas num único argumento explicitamente formulado tal como se segue:

  1. Os propósitos naturais ou biológicos dos órgãos são projetados pela evolução, ou por Deus, ou por ambos.
  2. Ora, um dos propósitos naturais ou biológicos dos órgãos sexuais é a abertura à reprodução.
  3. Um ato é moralmente apropriado só se tal ato realiza os propósitos naturais ou biológicos dos órgãos.
  4. Portanto, um ato sexual é moralmente apropriado só se tal ato está aberto à reprodução. [De 1 a 3]
  5. Os atos sexuais X não estão abertos à reprodução.
  6. Logo, os atos sexuais X não são moralmente apropriados. [De 4 e 5]

Onde se lê “atos sexuais X”, pode-se substituir X por qualquer ato homossexual, ou ato de masturbação, ou ato que utilize métodos contracetivos, ou outras práticas sexuais (como sexo oral ou anal). Com isto a Igreja Católica procura mostrar que tais atos sexuais não são moralmente apropriados. Será este um bom argumento?

A fundamentação dos passos 1 e 2 do argumento não parece muito problemática, pois o principal ponto dessas premissas consiste em reconhecer que os órgãos têm propósitos ou funções que são projetados pela evolução natural, ou talvez por Deus, (por exemplo, o propósito do coração é bombear o sangue, o propósito dos pulmões é oxigenar o sangue, etc.) e que, além disso, um dos propósitos dos órgãos genitais ou sexuais é a reprodução.

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E quanto ao passo 3? Esse é o passo central do argumento e quem defende que esse passo é verdadeiro está a pressupor que a teoria ética da «lei natural» é melhor do que as teorias éticas rivais (como é o caso da deontologia, do utilitarismo dos atos, do consequencialismo das regras, ou da teoria das virtudes). A lei natural é uma teoria ética, fundada por Tomás de Aquino, que vê os princípios morais básicos como objetivos, baseados na natureza, em vez de se basearem na convenção, e que são passíveis de serem conhecidos por todos através da razão natural humana. Tomás de Aquino procura argumentar que através do nosso intelecto nós podemos conhecer os princípios básicos do certo e errado que são fixos e imutáveis (não precisando de ser baseados numa revelação especial de Deus). Além disso, para Tomás de Aquino, os nossos deveres morais são baseados na nossa natureza como seres racionais e biológicos; deste modo, devemos buscar bens do corpo (como comida, sobrevivência e reprodução), bens da mente (como conhecimento) e bens sociais (como a cooperação). Portanto, a moralidade humana é o que é por causa da nossa natureza humana. Ora, se isto é verdadeiro, então parece que será errado agir de forma contrária à natureza humana e aos seus propósitos; uma vez que um dos propósitos da relação sexual é a reprodução, será errado qualquer outro uso da sexualidade que impeça esse propósito natural e biológico dos órgãos sexuais.

Será então bom esse argumento? Há fortes razões para se dar uma resposta negativa. Para sustentar isso apresento as seguintes razões: o primeiro problema no argumento da ética sexual católica é que não é nada claro que a teoria da lei natural (tal como defendida por Tomás de Aquino ou mais recentemente por John Finnis ou pela Igreja Católica) seja a teoria ética mais plausível quando comparada com as teorias éticas rivais. Uma das principais críticas que se pode apontar à teoria da lei natural é que parece confundir o “ser” com o “dever ser” (ou seja, confundir o descritivo com o normativo); por exemplo, do facto do sexo produzir frequentemente bebés daí não se segue que o sexo deve ser praticado para esse propósito; pois, uma coisa são os factos e outra são os valores.

Em segundo lugar, mesmo que se admita alguma plausibilidade a essa teoria da lei natural, daí não se segue facilmente que o passo 3 seja verdadeiro. O próprio Tomás de Aquino admite que a aplicação da sua ética a situações específicas é frequentemente muito difícil (e vale a pena realçar que existem adeptos da lei natural que não aceitam a premissa 3 como verdadeira).

Em terceiro lugar, existem muito contraexemplos para os passos 3 e 4 do argumento que mostram que não há nada de moralmente errado em usar os órgãos para outra função que não são o seu propósito natural ou biológico. Por exemplo, mesmo que o propósito biológico dos pés seja para nos permitir caminhar, correr e saltar, não há nada de errado na ação de chutar uma bola ou em usar o pé para carregar no travão do carro. Além disso, mesmo que o propósito dos nossos olhos seja para ver, nada há de moralmente errado em usá-los para piscar um olho. Ou mesmo que a finalidade natural dos nossos dedos seja para pegar em coisas, é absurdo alegar que seria imoral estalar os nossos dedos para fazer música. Também não há nada de errado em andar por aí a assobiar mesmo se esse não é o propósito natural e biológico dos lábios e da boca. Do mesmo modo, mesmo que o propósito biológico dos órgãos sexuais seja a reprodução, não há nada de moralmente errado ao usá-los para promover o prazer ou para fortalecer uma relação de amor. Assim, é falsa a ideia de que não podemos usar os nossos órgãos para outras finalidades ou propósitos que não são biológicas ou naturais. Toda a argumentação da ética sexual católica assenta então em duas premissas falsas, nomeadamente a 3 e a 4. Ou seja, tal como ilustrei, um ato pode ser moralmente apropriado e não realizar qualquer propósito biológico ou natural. Por isso, a ética sexual católica está errada.

O filósofo católico Michael Dummett, no seu livro The Nature and Future of Philosophy (publicado em 2010), aponta igualmente para esses erros da ética sexual da Igreja Católica, salientando que a encíclica Humane Vitae (que condena o uso da contraceção) lesou seriamente a consideração que os fiéis tinham pelos ensinamentos morais da Igreja Católica em geral, assim como a integridade da teologia moral católica. De acordo com Dummett, a filosofia moral não acomoda tais proibições do uso dos contracetivos, havendo inconsistências lógicas na própria ética sexual da Igreja. Por exemplo, há uma inconsistência entre afirmar que (i) é legítima a intenção de reduzir a frequência ou número de gravidezes e (ii) condenar como moralmente errado um ato de contraceção artificial que tem a intenção legítima de reduzir esse número de gravidezes e que não é intrinsecamente errado. São estas contradições ou inconsistências na doutrina, inclusive com as proibições absurdas sobre o uso dos preservativos para combater a SIDA, que a tornam indefensável e a conduzem a um descrédito generalizado na sociedade contemporânea. Nessa base as palavras do filósofo católico Michael Dummett fazem todo o sentido: “a Igreja Católica está num caos moral não resolvido”.

É importante realçar que pode haver desenvolvimento nas conceções morais ou éticas da Igreja Católica, e que aquilo que outrora era considerado como certo pode ser agora considerado com errado à luz dos novos conhecimentos. A esse propósito ao longo da história da Igreja houve alguns desenvolvimentos nas conceções morais com respeito à escravatura e tortura. Mais recentemente a Igreja Católica mudou de posição em relação à moralidade sobre a pena de morte; enquanto tradicionalmente a Igreja considerava a pena de morte como legítima em certas situações, agora condena-a de forma absoluta. A esse propósito o Papa Francisco alterou o catecismo com o parágrafo §2267. Assim, tal como a Igreja Católica reconheceu no passado que estava errada em aspetos da ética, como no caso da pena de morte, também pode reconhecer agora que estava errada na sua ética sexual. Só é pena estar muito atrasada neste processo.