Alguns desacordos têm uma resolução racional simples. Por exemplo, após um rápido cálculo mental depois do jantar, eu e o meu amigo podemos formar diferentes crenças sobre o que cada um deve pagar e isso gera desacordo. Mas facilmente chegamos a um acordo de que devemos fazer novamente os cálculos (talvez agora com a ajuda de uma calculadora). Contudo, nem todos os casos de desacordo são tão simples e com uma resolução racional tão clara. Certamente todos já se depararam com casos difíceis de desacordo, alguns dos quais são tão intensos que não apenas não é claro se podem ser resolvidos, como não é sequer óbvio que estejamos a comunicar algo. Nalguns casos podemos oferecer argumentos ou evidência para uma dada crença, mas a outra pessoa nem sequer aceita os pressupostos básicos dessa argumentação, duvidando que aquilo que chamamos “evidência” é realmente evidência.

Por exemplo, num debate sobre o aborto um cristão pró-vida pode apelar à ideia de que Deus infundiu uma alma racional nos humanos desde a conceção e, por isso, desde a conceção existe uma pessoa. Ora, como nesse caso o aborto consiste em matar uma pessoa, tal prática é moralmente impermissível. Mas alguém pró-escolha que nasceu num ambiente secular certamente não vai aceitar esses pressupostos, alegando pelo contrário que nos primeiros meses de gravidez ainda não há pessoa (ou seja, não há qualquer indivíduo com as capacidades psicológicas da racionalidade ou da consciência de si) e, por isso, dado que não envolve a morte de uma pessoa, o aborto não é moralmente errado. Neste caso parece que não está disponível qualquer resolução racional para esse tipo de desacordo, pois as partes em desacordo nem sequer concordam com o que deve ser considerado como evidência.

Podemos ver este problema em muitos outros debates e desacordos sobre a legalidade da eutanásia voluntária, a prática da vacinação, a existência de Deus, a moralidade das touradas, entre outros. Nesses casos parece haver um desacordo sistemático e persistente, mas não apenas sobre factos. É sobretudo um desacordo sobre os métodos relevantes, a evidência, os padrões, e os argumentos que podem ser usados para se obter conhecimento no domínio em consideração. O filósofo Ludwig Wittgenstein, no livro Da Certeza (1969), alegava que esses desacordos são desacordos sobre compromissos de “dobradiça”.

Mas o que é um compromisso de dobradiça? Isso é uma metáfora criada por Wittgenstein para explicar como funciona a nossa vida cognitiva. A ideia é que, tal como, se queremos que a porta se abra, é preciso que as dobradiças lá estejam, assim também, se queremos fazer avaliações racionais, também precisamos de algo estável, como certezas. Por outras palavras, a nossa prática epistémica de dar razões para acreditar e duvidar pressupõe uma base de certezas “isentas de dúvida”. E essas certezas estão “isentas de dúvida” porque são elas que tornam em primeiro lugar possível o nosso espaço de razões e de dúvidas. Ou seja, toda a avaliação racional (o que inclui todas as crenças, dúvidas, etc.) pressupõe tais compromissos básicos arracionais. Para Wittgenstein esses compromissos arracionais são convicções “animais” ou “viscerais”, não sendo adquiridos por um processo racional, mas antes “engolidos” na aprendizagem. Assim, não há uma atitude epistemicamente racional que se possa adotar em relação a tais compromissos de dobradiça.

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Aplicando essa teoria aos desacordos sistemáticos e persistentes sobre o aborto, a eutanásia, a vacinação, etc., pode-se dizer que tais desacordos são persistentes precisamente porque há um confronto ou choque entre dois compromissos de dobradiça ou entre duas mundividências incompatíveis. Mas esse desacordo profundo, dado ser um desacordo sobre compromissos de dobradiça, não tem resolução racional (pelo menos de forma direta). Isto porque, tal como salientei no parágrafo anterior, os compromissos de dobradiça estão fora do âmbito da avaliação racional e, assim, não são justificados nem injustificados. Ora, se tais compromissos não são justificados nem injustificados (isto é, se estão completamente fora do espaço de razões epistémicas), então não há uma resposta racional para resolver desacordos sobre compromissos de dobradiça. Ou seja, se não podemos estar certos ou errados sobre os compromissos de dobradiça que enquadram a nossa imagem do mundo, não há solução racional para desacordos profundos.

Então como devemos lidar com os desacordos profundos, se estes são racionalmente irresolúveis? Wittgenstein tem uma perspetiva pessimista em relação a essa questão. No final do livro Da Certeza ele diz que “No fim das razões vem a persuasão (Pense no que acontece quando os missionários convertem os nativos)”. Mas essa resposta parece muito problemática, pois sem a componente racional, o que impedirá um uso pervertido da persuasão, por exemplo com recurso à coerção ou propaganda? Além disso, os métodos usados pelos missionários para converter os nativos não foram os mais apropriados.

Há alguma forma mais otimista de lidar com os desacordos profundos? Uma possibilidade poderá passar pelo desenvolvimento de virtudes intelectuais (por exemplo, através das instituições educativas). E essas virtudes (tais como educação, auto-compreensão, mente aberta, tolerância e humildade, etc.) podem fomentar que as partes em desacordo formem disposições cognitivas que sejam condutíveis a estados epistémicos de qualidades. Por exemplo, as partes em desacordo podem formar disposições para procurar um “terreno comum” ou uma sobreposição de compromissos de dobradiça que possam partilhar e no qual seja possível uma resolução racional.

Essa estratégia foi seguida, por exemplo, pela filósofa pró-escolha Judith Jarvis Thomson para argumentar a favor do aborto. Esta filósofa procurou esse terreno comum com os adversários ao aceitar que todos os fetos têm direito moral à vida. E com base nessa sobreposição de compromissos de dobradiça com a posição pró-vida, argumentou que mesmo que os fetos tenham direito moral à vida daí não se segue que o aborto seja errado. Mas porquê? Suponha-se que somos raptados e estamos ligados ao sistema circulatório de um violinista durante nove meses para salvar a sua vida. Intuitivamente parece não haver nada de errado em desligarmo-nos do violinista; pelo menos não parece haver uma obrigação moral para estar assim ligado, sendo que algo semelhante ocorre com o aborto. Assim, ao procurar-se uma sobreposição de compromissos de dobradiça ou terreno comum de troca de argumentos abre-se espaço para um diálogo mais fecundo e para a possibilidade de resoluções racionais de desacordos.