Devia começar pelo óbvio: as opiniões são livres, uma bendição da democracia e da tolerância com os que pensam diferente; as perceções sobre entidades políticas, como a União Europeia (UE), divergem se partirmos de pressupostos diferentes. Muito embora este artigo parta (e se distancie) de dois artigos de opinião recentes, o seu propósito é o de, modestamente, expor uma visão da UE que está nos antípodas desses artigos.

Os dois artigos são de Jaime Nogueira Pinto (JNP) (“O que está em jogo”, Observador, 1 de junho) e de Ricardo Pinheiro Alves (RPA) (“O federalismo é uma ameaça para a União Europeia”, Observador, 2 de junho). O federalismo como maldição da UE faz o pleno em ambos os artigos. O de RPA explora a falácia do federalismo e vaticina que a UE poderá ser reduzida a escombros, porque o federalismo implica “(…) uma intentona para acabar com a legitimidade democrática nacional”.

O federalismo é o patinho feio da UE. É frequentemente objeto de interpretações erróneas. Os detratores do federalismo partem de um exercício especulativo: a metamorfose da UE segundo um modelo conhecido de federalismo. Ora, a UE é uma organização política diferente dos Estados e das organizações internacionais. Não sendo um Estado e não se concebendo, com o conhecimento atual, que ambicione evoluir para os “Estados Unidos da Europa”, o exercício comparativo não passa de contrabando intelectual. Uma âncora imaginada para arregimentar lealdades contra a ideia de Europa.

Outra fonte de tresleitura do federalismo é considerá-lo um conceito homogéneo. Mas não existe federalismo; há federalismos diversos, com características diferentes. Federalismos centralizadores e federalismos que promovem a descentralização. Os adversários do federalismo na UE terçam armas porque o consideram uma ameaça existencial ao Estado-nação. JNP adverte que “[a] nação independente e soberana continua a ser a comunidade ideal para proteger direitos, liberdades e garantias, coletivos ou individuais. É importante que a União Europeia não continue a cair na tentação de querer ser mais do que uma comunidade de Nações.” Situar o problema do federalismo nestes termos ignora o federalismo descentralizado, que se inspira no princípio da subsidiariedade (a UE também se alicerça nele, convém recordar). E traz consigo uma insinuação conspirativa, de base dicotómica: ou a UE recusa o federalismo, ou é a sobrevivência do Estado-nação que está em causa.

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A História da UE é didática: pensadores na vanguarda da integração europeia preconizaram a federalização da UE, mas a perna das decisões políticas, a que esculpiu a UE, esteve sempre muitos passos atrás dessa cobiça. Os oponentes do federalismo receiam que o futuro seja madrasto para o Estado-nação. Talvez desconfiem que os futuros eurocratas, com o consentimento distraído dos políticos nacionais, sejam os alfaiates de uma Europa federal que enquista os poderes dos Estados na irrelevância. Não passa de um exercício especulativo, que não tem como se esconder do anátema da conspiração que é instrumental à reserva sobre a UE.

O indevido entendimento do processo de integração europeia alimenta um rosário de erros. RPA alerta que os deputados eleitos para o Parlamento Europeu (PE) representam os países que os elegem e não “(…) qualquer utopia difusa chamada ‘interesse da UE’”. Admito que essa seja a sua visão pessoal que, todavia, esbarra no preceituado pelos tratados europeus. RPA esvazia a existência do “interesse europeu”, argumentando que se funde na constelação de interesses nacionais. A ontologia da integração europeia (para além da paz, seu valor axial) funda-se na existência de problemas comuns aos Estados membros, que aceitam tratá-los em conjunto nas instituições da UE. Se não fosse hostilizar as ideias do autor, diria que esta lógica quadra com a metáfora do condomínio como fundamento de uma solução federal.

A partir do momento em que as (então) Comunidades Europeias foram criadas e dotadas de alguma autonomia, enraizada num sistema institucional próprio que é autónomo das autoridades nacionais, essa autonomia deve ser reconhecida à UE. Se os países cuidam dos bens públicos comuns através das instituições da UE usando recursos partilhados, como negar a existência de interesses europeus? A História oferece outro contributo: as Comunidades Europeias não nasceram à revelia dos países fundadores, nem a UE evoluiu em segredo, às escondidas dos Estados membros e contra a sua vontade.

JNP oferece o seu ceticismo ideológico sobre a UE. Parte da defesa dos partidos nacionalistas (assim os cunha) para o(a) leitor(a) entender a posição crítica, ou mesmo a oposição à UE, desses partidos. A mundivisão de JNP, influenciada pelo nativismo, opõe-se ao multiculturalismo e limita a entrada de migrantes e de refugiados, pois estes comprometem “(…) a identidade a longo prazo e a segurança a curto prazo das comunidades de acolhimento (…)”. E serve-se do determinismo histórico, que a História aconselha a tratar com reserva, ao perfilhar “(…) valores de orientação permanente (como a pátria e as pátrias, as famílias, uma ética de inspiração cristã, a liberdade)” para recusar “mais Europa” que se oponha à “Europa das nações”. JNP não dá conta que o derradeiro valor, afastado da custódia da UE, é contraditado pela formulação que o antecede. Como  advogar a liberdade partindo do pressuposto que há “valores de orientação permanente” que cerceiam a liberdade de valores alternativos?

É esta Liberdade (a maiúscula não é acidental) que habilita diferentes perceções sobre a UE. O(a) leitor(a) já deve ter compreendido que sou “euro-otimista”. Não diligencio a conversão dos que desconfiam da UE, pois corresponderia à violação da sua liberdade. Para defesa da minha posição concorrem o pessimismo antropológico, o determinismo histórico do Estado-nação (um viveiro de guerras mortíferas) e o reconhecimento de que a Europa unida, que medrou nas diversidades (“unidade na diversidade” é o lema da UE), proscreveu as guerras do seu território por 79 anos (até ver). Este é um devir comum, europeu, em antinomia com uma “Europa das nações” tributária do ensimesmar dos países, geneticamente confrontacional e propensa à beligerância.

Se o preço dos nos entendermos ao nível europeu é a paz, que esse preço seja o nosso investimento existencial.