A nossa tendência para celebrar inovadores & revolucionários é natural1 e compreensível: afinal foram eles que iniciaram ou nos mostraram um caminho que, em retrospetiva, consideramos positivo ou bom2.

Per exemplo, Abraão que dando ouvidos ao chamamento divino lançou os fundamentos do estado de Israel & Moisés que obedecendo, algo contrafeito, às instruções de Deus libertou os israelitas da escravidão dos egípcios são dois dos principais heróis3 israelitas. Em Portugal veneramos D. Afonso Henriques que, fossem quais fossem os seus motivos pessoais, nos conquistou a independência & fundou a nacionalidade, duas coisas boas, e nos Estados Unidos celebram Thomas Jefferson e os outros sediciosos que, fossem quais fossem os seus motivos particulares, proclamaram a independência4 e por ela lutaram.

Esta tendência, apesar de natural & saudável é, no entanto, incompleta5, míope e manca. A razão é que esquece aqueles que, vindo depois, não só foram fiéis à visão inicial como a protegeram e lhe deram pernas para andar. O que seria de Israel sem Isaac e os que se lhe seguiram? E de Portugal sem D. Sancho I ou o Mestre de Avis? Tivesse D. Sancho I dado cabo da revolução liderada pelo seu pai e alguém celebraria hoje fundador da nacionalidade?

Abraão fundou o judaísmo & estabeleceu a aliança. Mas Isaac manteve-a viva e a sua ação foi determinante para a transmissão do monoteísmo num mundo cheio de ídolos e idolatras. Isaac não foi um revolucionário fundador, mas um continuador, isto é, conservador de uma coisa boa, sem a qual a revolução Abraâmica teria morrido. Será então menos importante que Abraão? A sua vida dá-nos pistas para perceber como as revoluções se tornam tradições e se mantêm vivas. E que não é menos importante nutrir e sustentar uma inovação do que iniciá-la.

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Este ano em que celebramos o meio centenário do 25 de Abril, quem devemos homenagear? Spínola e os outros capitães? Sem dúvida. Mas só eles? O que seria do 25 de Abril sem Eanes & Jaime Neves? Servidão6 numa Cuba não insular? Ou o que seria do 25 de Abril sem Carneiro & Freitas? Uma democracia militar? Ou sem Cavaco & Passos? Um estado de direito europeu com um desenvolvimento económico e social semelhante ao do Haiti ou da Guiné Bissau?

Assim parece legitima a pergunta: em qual dos muitos murais7 a celebrar a revolução aparecem Cavaco & Passos? Ou em qual dos múltiplos discursos e peças jornalísticas a comemorar a revolução se mencionaram Eanes & Neves, Carneiro & Freitas e se contam os seus feitos heroicos? Quem foram os defensores da revolução dos cravos que permitiram que esta não morresse? Os coronéis do Conselho da Revolução & os ministros de Soares y Sócrates ou, pelo contrário, os governos de Cavaco & Passos?

À primeira vista, os feitos e o legado de Isaac podem parecer medíocres e olvidáveis quando comparados com os de seu pai. Para além do seu sacrifício em prol da nação hebraica quando ainda criança, sacrifício que nem sequer chegou a ser consumado, qual é o episódio da sua vida de que nos lembramos? Nada de especial: não emigrou, nem conquistou, nem construiu. No entanto, aquilo que por nós é usualmente esquecido foi essencial para a sobrevivência do seu clã e para o florescer dos seus descendentes.

Por exemplo? Defendeu e manteve funcional o que recebeu: “Isaac cavou os poços de água que seu pai Abraão cavara e que os Filisteus tinham entulhado depois da morte de Abraão, e deu-lhes o nome que Abraão lhes tinha dado.” (Gen. 26, 18) Os poços que Isaac manteve vivos não foram apenas os poços de água para os carneiros. Foram também os poços daquela água que permitiu alimentar os humanos com o outro legado de Abraão: a crença e o relacionalmente com um Deus único, a fundação de um povo, mais numeroso que toda a areia do mar ao rio, que tomaria posse da terra de Israel, e o aprofundamento gradual do conhecimento de um sistema ético do qual somos todos beneficiários.

E os poços de Abril? Não têm sido também regularmente entulhados pelos nossos filisteus, de Gonçalves & Otelo a Guterres & Sócrates? E quem foram os heróis que os desentulharam, uma e outra vez, permitindo a rega dos cravos de Abril de modo que estes não murchem? E porque não são homenageados, com o relevo que merecem, esses preservadores de Abril nesta efeméride? Por esquecimento? Ou pela nossa falta de consciência de que foram eles & as suas políticas que permitiram que o 25 de Abril ainda não morresse? Ou será por incoerência8?

Isaac não deu origem a um novo povo ou a uma nova religião. Cavaco e Passos não saíram para a rua com G3s nem fizeram uma descolonização exemplar. Isaac foi fiel ao legado do seu pai, seguindo e desbravando o caminho que ele tinha iniciado. Cavaco e Passos, para nossa sorte9, foram fiéis aos ideais democráticos e sociais do 25 de Abril, não permitindo que a pobreza e a bancarrota, a prepotência e a corrupção os destruíssem completamente.

Quem terão sido então os verdadeiros heróis da revolução de Abril? Os agentes locais do totalitarismo soviético que tentaram desviar o voo de Abril? O empresariado produtor da legislação e regulação que esmaga o empreendorismo & prosperidade nacional ao mesmo tempo que cava os túneis partidários que lhes permitem raptar para uso próprio as verbas do orçamento do estado? Ou Cavaco e Passos que desentulharam a democracia e a mantiveram viva? Não merecerão estes, mais que ninguém, murais & estátuas?

Us avtores não segvew as regras da graphya du nouo AcoRdo Ørtvgráphyco. Nein as du antygu. Escreuew covmv qverew & lhes apetece. #EncuantoNusDeixam

 
  1. Natural: estado do que estritamente se conforma com as leis da criação; aquilo que se consegue através de muito treino; ação que se harmoniza com as circunstâncias sociais em que é feita.
  2. Bom: aquilo que deve ser desejado, mas costuma ser deixado intocado; o que é querido pelas pessoas, mas que não é fornecido, nem promovido, pelo guverno; espécie que, segundo a segunda lei de Gresham, é expulsa pela presença da que é má; qualidade do que, segundo a terceira lei de Paulo de Tarso, deve ser usado para vencer o mal (Rom 12, 21).
  3. Herói: o vilão na narrativa do inimigo; animal raro na cultura repressiva do hétero-patriarcado europeu, mas planta comum (do tipo urticadioida) extensivamente cultivada no igualitarismo socialista, na União Suviética e na Cureia do Norte.
  4. Independência: livre do suporte do orçamento de estado e da segurança social; posição de quem não tem que temer das ameaças e pressões do governo, do estado administrativo ou de entidades afins.
  5. Incompleto: visão que temos do amanhã; estado atual na visão dos que amanhã olharão para hoje; inacabado, como a vida dos que ainda não partiram.
  6. Servidão: estado de escravidão, ou sujeição, a alguém mais poderoso, estado só possível quando o sujeito não está disponível a emular Ghandi, King ou Walesa nem para viver segundo o moto de “give me liberty or give me death!”; estado que se conquita vivendo & gritando “give me my preferred pronouns or give me a biscuit!”.
  7. Mural:aquilo que fazemos & pintamos do lado de cá do muro, que difere do que os outros fazem & pintam do lado de lá; tudu aquilo que respeita à parede que protege os atos humanos da perniciosa atividade do maligno, das tentações e da concupiscência; segundo Sua Santidade, para construir uma sociedade mais fraterna, é preciso derrubar todos os muros e deixar para trás atitudes muralistas ultrapassadas que protegem a propriedade no comportamento pessoal & privado; também Warx defendia a abolição de toda a propriedade e a destruição da muralidade burguesa que a protege.
  8. Incoerência: uma consistência intelectual e ética como aquela de uma boa pessoa, amiga apaixonada do ambiente, usar e, às vezes, abusar de veículos de combustão interna, apesar de os considerar como um mal que destrói o ambiente e, no entanto, não compreender como é que outras boas pessoas que, em épocas passadas, eram contra a escravatura, podiam ser pessoalmente donas de escravos, e não só não as compreender, mas até as condenar; uma virtude woke.
  9. Sorte: uma jovem inconstante que concede os seus favores aos rapazes que a tratam mal.