Estamos diante de uma crise sem precedentes. A pandemia provocada pelo corona vírus não tem mais fronteiras.
A experiência dos países onde a epidemia está mais avançada deixa claro que não há opção. Para evitar um pico de infectados com necessidade de atendimento hospitalar que levaria ao colapso do sistema de saúde, é imperioso que as pessoas se isolem e que evitem todo o contato social. O confinamento domiciliar de todos que não trabalhem nas atividades essenciais é a única forma de reduzir o coeficiente de infecção e de distribuir o número de doentes ao longo do tempo.
O confinamento obrigatório tem altos custos pessoais e econômicos. A paragem brusca da economia será sem precedentes. Muito mais intensa do que a provocada por qualquer crise recessiva cíclica do passado. Estamos diante de uma verdadeira escolha de Sofia: ou o colapso do sistema de saúde, com um enorme número de mortos, vítimas da sobrecarga do sistema hospitalar, ou bem uma paragem sem precedentes da economia. Mas não há alternativa. Ao menos por alguns meses, na melhor das hipóteses, será preciso paralisar todas as atividades não essenciais para reduzir a circulação de pessoas.
A sobreposição da crise económica a uma dramática crise sanitária exige resposta imediata e audaciosa. Na Europa e nos EUA os governos anunciaram medidas de emergência. O Banco Central Europeu e o Fed estenderam linhas de crédito praticamente ilimitadas para o sistema bancário. Medidas fiscais estão sendo negociadas para aprovação nos parlamentos. Há uma preocupação de não repetir o erro de 2008, quando foi feito “muito pouco, muito tarde”.
Antes de mais nada, é preciso descartar as falsas restrições. A questão das fontes de recursos para as despesas do governo é um falso problema. É resultado de um arcabouço teórico equivocado e anacrónico que foi erigido em dogma dos economistas hegemónicos nos últimos anos. A tese de que o governo não pode gastar se não dispuser de fontes fiscais, de que é sempre preciso equilibrar o orçamento para evitar a expansão da dívida pública interna, não tem qualquer validade lógica ou empírica. É um mito com pretensão científica. Um mito transformado em dogma para restringir a ação do Estado. Trata-se de um mito com altos custos em tempos normais, mas que em situações extraordinárias, como a atual pandemia, ao impedir a adoção de políticas públicas indispensáveis para minorar a crise e o sofrimento, é desastroso.
A preocupação com as fontes de recursos e o equilíbrio orçamental do governo são restrições auto impostas para conter os excessos populistas e tentar dar racionalidade aos gastos públicos, justificadas em tempos normais, mas que devem ser desconsideradas por completo numa emergência como esta pela qual passamos. Países que delegaram a emissão da moeda para sistema supranacional, como é o caso dos países do Euro, dependem da atuação coordenada do Banco Central Europeu (BCE). Por isso, a ação do BCE, garantindo crédito ilimitado para as economias da UE, é fundamental.
O desafio não é encontrar “fontes” de recursos. O governo pode sempre gastar para financiar despesas indispensáveis e justificáveis. Ao longo da história, mesmo quando o Estado ainda estava restrito pela exigência de lastrear a moeda num metal precioso, a conversibilidade da moeda foi sempre suspensa quando necessário para fazer face a despesas públicas extraordinárias e imprescindíveis, como no caso das mobilizações de guerra. O verdadeiro desafio é, antes de tudo, como mobilizar, de forma rápida e eficiente, recursos reais para a saúde, como expandir a capacidade da rede de hospitais, com leitos, equipamentos e recursos humanos. Em seguida, como minorar os efeitos económicos e sociais do confinamento obrigatório e da brusca paragem da economia.
A crise de 2008 foi uma crise financeira que provocou uma crise da economia real. Esta é uma crise da economia real que irá provocar uma crise financeira. Em 2008 o problema estava no sistema financeiro, que carregava créditos ilíquidos e inadimplentes. A injeção de liquidez primária no sistema bancário, para compensar a contração do crédito privado, foi capaz de estancar a crise financeira, salvar o sistema financeiro e com ele toda a economia. Hoje, o problema não está no sistema financeiro. A injeção de liquidez primária pelos bancos centrais irá ficar retida no sistema bancário que, temendo um incumprimento generalizado provocado pela paragem da economia, irá se recusar a estender crédito às empresas, independentemente da quantidade de reservas injetadas pelo banco central.
É preciso que os governos e os bancos centrais ajam de forma a garantir a liquidez e o crédito, sem depender da intermediação do sistema financeiro privado.
A primeira medida seria uma moratória de todos os créditos correntes, pelo tempo em que durar a paralisação obrigatória da economia. Todos os créditos correntes seriam estendidos, à taxa básica do Banco Central, até o fim do confinamento. Além disso, os bancos deveriam obrigatoriamente conceder crédito adicional a todas as empresas afetadas pela paralização, à taxa básica acrescida de um spread mínimo para cobrir os seus custos. O risco de crédito, durante a fase critica de emergência inicial deverá ser assumido integralmente pelo estado. Os bancos devem fazer uma análise e aferimento mínimos acerca da idoneidade das empresas e da necessidade do crédito.
Um programa de ajuda de custo universal, no mínimo durante o período em que durar a paralização, deveria ser imediatamente adotado. É imperativo ser generoso com a população desassistida e com os que irão perder o emprego e as suas fontes de renda.
Medidas como essas tendem a vir acompanhadas de exigências burocráticas para evitar abusos. Compreende-se, mas a hora exige deixar de lado a burocracia. Grandes crises podem tanto despertar o egoísmo quanto o altruísmo. O Estado precisa de dar o exemplo, ousar e confiar.
Aplicando esta linha de raciocínio ao caso específico português, é inevitável concluir que a dimensão prática das medidas excecionais anunciadas até agora pelo Governo não é suficiente para enfrentar o desafio presente. E ainda não se criaram as condições para a sua implementação de forma pragmática e célere, livre do ónus da burocracia.
Até agora, para as famílias haverá apoio aos pais (direito de assistência a filhos e netos), baixas médicas e apoio aos casos de risco (isolamento profilático).
Para cada um destes casos é necessário que se obtenham baixas médicas ou declarações da autoridade de saúde atestando a verificação das condições.
Esta declaração deve ser entregue ao empregador, que fica responsável por desencadear o processo na Segurança Social. É o empregador que terá de assegurar o pagamento das remunerações, e só depois a Segurança Social avaliará o mérito e procederá à devolução à empresa do montante do apoio quando (e se) ele vier a ser aprovado.
Este processo é moroso, especialmente com o confinamento em prática, e altamente exigente para a tesouraria das empresas.
É fundamental, para isso, que as empresas acedam aos apoios à tesouraria anunciados: a suspensão da obrigação de pagar impostos, o adiamento das contribuições para a Segurança Social, o sistema de lay off simplificado e o acesso a linhas de crédito para capitalização das empresas.
E o que é que isto significa ou como se põe em prática?
A suspensão de obrigação de pagamento de impostos é relativa ao Pagamento Especial por Conta, e à entrega do Modelo 22 (IRC), relegando-a para datas a partir de 30 de Junho mas apenas se permite que as empresas dividam o seu pagamento em três prestações mensais (ou seis, com juros de mora aplicáveis aos últimos três). Além disso, não nos esqueçamos de que, durante o exercício de 2019, as empresas já adiantaram obrigatoriamente os pagamentos por conta de IRC de 2020.
As contribuições à segurança social, por outro lado, são reduzidas para um terço em Março, Abri e Maio e observam as mesmas regras definidas para o pagamento de impostos.
No que toca ao acesso às famosas Linhas de Apoio à Tesouraria, nada concreto foi ainda dito pelo governo que realmente obrigue os bancos a conceder uma moratória compulsória para os financiamentos em curso das empresas em situação de crise. Alguns bancos estão já a anunciar medidas, e ainda bem, mas elas deverão ser simples, uniformizadas e obrigatórias.
As linhas de crédito anunciadas pelo governo têm taxas de juro que rondam os 3%, quando o BCE já anunciou que vai injetar liquidez no sistema financeiro europeu com taxa de juro negativa de -0,75%. Isto significa que se os bancos cobrarem agora 0% às empresas já estarão a ganhar 0,75%.
Como pode o Ministério da Economia advogar que as empresas contratem financiamentos para fazer face à crise com taxas iguais às que eram praticadas antes da crise? A ideia é ajudar as empresas e não oferecer à banca um novo e lucrativo negócio.
Acresce que o acesso às vitais linhas de crédito (com taxas quase usurárias, atenta a circunstância) exige, cumulativamente, que as empresas demonstrem rácios de solvabilidade (aferidos pela análise dos capitais próprios); que apresentem as contas de 2019 fechadas (coisa que quase nenhuma empresa terá ainda, uma vez que na prática corrente as empresas fecham contas a partir do fim de Março); e que as empresas declarem ter sofrido uma quebra de pelo menos 20% nas receitas, nos últimos 60 dias, comparados com o período homólogo do ano passado, confirmada por contabilista certificado — período que deveria ser, no máximo, de 30 dias.
Sobram perguntas: então, as empresas só poderão candidatar-se às linhas daqui a cerca de dois meses? E até lá pagam os apoios da segurança social pelo Estado e suportam todos salários sem ter receita nem tesouraria? Como? E as empresas que ainda não têm um ano completo? Aplica-se a mesma regra definida para o Lay off ? E as start-ups recém-criadas?
Enfim, em cada tentativa para perceber como devemos agora proceder, surgem-nos entraves e pedras na engrenagem ou múltiplas questões e zonas cinzentas.
Não é difícil imaginar como estará a vida dos pequenos empresários deste país. Seja da restauração ou de qualquer tipo de retalho. Certamente não têm apoio jurídico nem diretor de recursos humanos. Não são peritos a fazer processamentos salariais nem conseguem decifrar as múltiplas publicações do Diário da República. Tentam ir à internet mas é preciso um curso de direito para dar seguimento às indicações do site da segurança social que explicam o regime de lay off. Então, pedem ajuda à contabilidade que, em regime de teletrabalho, não consegue sequer aceder ao suporte físico de papel em que legalmente ainda está obrigada a basear a atividade contabilística das empresas. A contabilidade, ocupada, não atente os empresários. E é o caos instalado.
Assim, e porque sabemos que o governo tem pessoas extremamente capazes, parece-nos inevitável concluir que o Estado ainda está em negação.
Será que o governo português ainda está a tentar passar por esta crise na perspetiva de tentar manter visível a luz ao fundo do túnel e ficar perto das metas orçamentais que estavam definidas antes do COVID-19?
Não seria melhor, como fez ontem o Reino Unido, pararmos de sonhar com a ideia de tentar minimizar o impacto do vírus nas contas públicas? O risco humano e económico dessa tentativa é tremendo e não pode ser corrido.
O BCE já disponibilizou os fundos. A Presidente da Comissão já acionou a cláusula de exclusão e libertou os estados do cumprimento do défice. As empresas vão ter de suportar perdas. Mas o Estado tem de ajudar e os bancos e senhorios também terão de deixar de ganhar.
É duro, mas é verdade. Vamos todos perder.
É urgente saber interpretar os sinais da crise que estamos a viver para, aprendendo com o passado, tomar medidas, sobretudo do ponto de vista económico, de acordo com a realidade actual.
À data de hoje, como já acima ficou dito, a crise nada tem a ver com o sistema financeiro. Trata-se de uma crise diferente, de “Quebra na Produção”.
E o que podemos antecipar que acontecerá numa situação destas? A resposta é, simplesmente, nada. E é exatamente por isso, porque nada, ou quase nada, acontece dentro daquilo que seriam os fluxos económicos normais, que a única solução para o problema económico será tomar as medidas necessárias para que seja mantido o fluxo de dinheiro minímo e essencial ao funcionamento corrente da economia.
A solução passa, obrigatoriamente, por quatro áreas: emprego; financiamento; impostos e contribuições (Estado) e rendas (senhorios). Aproveitando as medidas acima descritas, a solução para Portugal deve simplificar todos os processos a elas relativos ir mais além.
O emprego tem de ser mantido, com obrigação para as empresas de garantir o salário através do processo de lay off. Para evitar despedimentos, o lay off deverá abranger todos os trabalhadores que constavam do processamento salarial da empresa no fim de Março (salvaguardando os contratos de trabalho a termo que entretanto terminassem).
Os profissionais independentes abrangidos pela portaria 71-A, de 15 de Março, deverão ser tratados como se lhes fosse também aplicado um regime de lay off, indexado ao valor de 2/3 de um salário mínimo por mês, pago automaticamente pelo Estado.
Os bancos deverão ser compulsoriamente levados a conceder uma moratória automática para todos os créditos em curso, de particulares e empresas, e durante esse período reduzir a taxa para a mesma taxa a que o BCE está a injetar liquidez na economia, voltando à taxa aplicável, finda a moratória.
O acesso às linhas de crédito tem de ser tratado como se fosse o próprio Estado a emprestar diretamente às empresas. Ora, para tal, os Bancos terão de ser obrigados, sem exceção, a garantir condições de acesso às linhas de crédito, a uma taxa muito reduzida, apenas para garantir a cobertura dos seus custos. O Estado tem, igualmente, de garantir 100% dos créditos concedidos.
O Estado tem de fazer as contas e aferir qual o prazo máximo que consegue conceder para o cumprimento das obrigações fiscais e de contribuições à segurança social, e estender as obrigações também por esse prazo.
Os senhorios, por seu lado, terão também de ser forçados a assumir perdas no seu rendimento, correspondente aos meses em que os inquilinos não conseguirem pagar as rendas por quebra da produção.
Para tudo isto, é fundamental acelerar o acesso às linhas de crédito e às medidas de alívio fiscal e de contribuições, que deverá depender de questionários simplificados e emissões de declarações on-line. O Estado deve, fiscalizando requisitos mínimos como a folha salarial de Fevereiro e os IES de 2018, tentar limitar-se a registar os processos e dotar as empresas e particulares de um título que garanta o acesso às medidas.
Poderão existir abusos? Claro. No entanto, posteriormente, as Finanças e a Segurança Social terão anos para fiscalizar, penalizando, quem tiver beneficiado ilegitimamente do estabelecimento destes processos céleres. O que, convenhamos, até é um risco razoável. Porque, na prática, quase toda a gente vai merecer o apoio — ou não está tudo parado?
Finalmente, todas estas medidas deverão ser enquadradas num prazo mínimo inicial de 6 meses, prorrogável por decisão do governo, até que a economia volte a recuperar o seu fluxo normal.
O Estado e os cidadãos não estão, ainda, acostumados a lidar com dois elementos que se revelam fundamentais na situação que o Mundo hoje vive. Por um lado, com o reconhecimento de que estamos perante uma situação de emergência — apenas equiparável a uma situação de guerra. E, numa situação de guerra, o que era certo e razoável deixa de o ser. E é necessária a coragem para tomar as medidas para responder à ameaça.
Por outro lado, a confiança. Os estados estão habituados a trabalhar na lógica burocrática de que tudo é proibido até ser feita prova de que se merece o levantamento da proibição.
Urge inverter agora esta lógica e apostar no primado da confiança. Confiar, agora, em todos e penalizar apenas, e só depois, quem tiver abusado dessa confiança.
O dinheiro que o BCE vai libertar é para a sociedade civil e para as empresas, não é para os balanços do sistema bancário nem para equilibrar o défice do Ministério das Finanças.
Se o dinheiro for entregue aos bancos para continuarem a fazer o seu negócio, eles não o irão libertar como é necessário porque estão com medo da economia. E, se não houver liquidez imediata, o buraco vai ser muito maior.
Todos vamos ter de perder. Mas se assumirmos o compromisso de manter o fluxo económico e assumir que todos vamos perder alguma coisa, e desde que o BCE injete a liquidez que já anunciou, é só uma questão de tempo até sairmos desta crise e a economia recuperar.
E aí, os livros de economia poderão dizer que num fenómeno de crise de “Quebra na Produção” ou “Halt Production”, o importante é a confiança dos Estados nas pessoas e nas empresas e a transferência de dívida a custo quase zero para os agentes económicos.
Está a ser passada, nas redes sociais, a mensagem de que a forma de sairmos desta crise é através da união. E é verdade, união, colaboração e confiança.
Os Portugueses sempre foram um povo ousado e corajoso. É bom que continuemos a sê-lo. E quem tem de dar o exemplo é o Estado.
Há que ousar e confiar.