Distanciamento histórico. No editorial da última Courrier Internacional, Rui Tavares Guedes afirma que só com distância poderemos avaliar com exatidão os impactos de determinados acontecimentos na evolução da humanidade. Exemplifica com 2001 questionando se, a esta distância, continuaremos todos a considerar que o 11 de Setembro foi o acontecimento mais definidor da humanidade nesse ano, face à integração da China na Organização Mundial de Comércio também em 2001 e à sua subsequente ascensão global que, provavelmente, a conduzirá no futuro a primeira potência do Mundo em diversas áreas.

Temos um pouco mais de 100 dias da crise que vivemos, 8 semanas da declaração de pandemia covid-19 pela Organização Mundial de Saúde. Hoje será difícil acreditarmos que nos próximos anos possamos considerar algo em 2020 como mais marcante para a humanidade que a covid-19. Percecionámo-lo sem o necessário distanciamento e sem termos uma visão clara do que sucederá nos próximos meses e anos relativamente ao vírus, às consequências sócio-económicas e psicológicas do isolamento de uma parte significativa da população mundial, aos impactos nas democracias e organizações internacionais e, finalmente, ao impacto do debate e da cada vez mais evidente introdução de sistemas de monitorização, rastreabilidade e controlo de contactos entre cidadãos. Este último ponto, pelo que acarreta em torno do modelo ético de sociedade e pelo impacto nas pessoas, na sociedade e nas suas instituições deve preocupar-nos e pode muito bem, quando olharmos 2020 com distanciamento histórico, competir com a covid-19 em torno do seu impacto na humanidade. E, sendo assim, choca alguma volatilidade e falta de clareza na discussão / decisão neste âmbito.

No início de 2018 começaram a surgir notícias sobre a análise de dados pessoais como instrumento de controlo e classificação de pessoas, na China. Na altura as reações foram de espanto e de crítica para com as instituições e dirigentes da China, que frequentemente testava estas tecnologias em regiões específicas do país, regiões essas frequentemente palco de conflitos ou ameaças. Ou seja, como invariavelmente sucede, a segurança a justificar o recurso a estas medidas.

Longe dos países ocidentais, este facto foi tratado um pouco à semelhança do que aconteceu com o início da actual pandemia em Wuhan. Como algo rotulado Chinês e que dificilmente chegaria ou seria possível nos apelidados “países ocidentais”. E, nem quando as tecnologias de monitorização foram sendo utilizadas no continente asiático, à medida que o vírus avançava, incluindo em países com instituições e tradição democrática, se discutia ou sequer questionava que pudesse ser uma hipótese na Europa ou nos Estados Unidos da América. Não trocaríamos segurança por privacidade.

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Contudo, quando em março nos fomos confrontando, em Portugal, com a dimensão do desafio pandémico e o impacto económico subjacente, começaram, de forma “envergonhada”, a surgir algumas notícias a este propósito. Afinal a utilização deste tipo de tecnologia era já discutido em alguns países, mas que nunca se avançaria com medidas desse tipo que não fossem absolutamente voluntárias. Ou seja, apenas seria vigiado quem o desejasse. Confuso? Como já há muito nos mostra a evidência da ciência psicológica, o “desejo consentido”, ou seja, o facto de aceitarmos o assunto e de nele pensarmos, rapidamente nos pode impulsionar em direção à sensação de necessidade.

Assim chegamos ao dia 3 de abril onde foi notícia no Público que a Google passaria a partilhar informação sobre os movimentos dos cidadãos utilizadores das suas ferramentas e plataformas para “ajudar a travar a propagação” da covid-19. Ao crescente debate sobre a necessidade de “reabrir a economia” e ao “desejo consentido” juntava-se um mote. Contudo, parece existir um evitar de discutir abertamente o tema e envolver as ciências mais relevantes (o direito, as ciências comportamentais e da saúde e a cibersegurança). Hoje, a discussão começa a preencher horários nobre da televisão, mas continua fora do debate político embora os testes da tecnologia já se tenham iniciado. Aqui chegados, cumpre perguntar, como foi possível que assim evoluíssemos sem nunca discutir e escrutinar o essencial?

Partimos de uma premissa que já há muito é considerada falsa. Que a tecnologia tem valor neutro e que apenas a sua aplicação pode ser positiva ou negativa. Nada mais falso. A mera existência da possibilidade tecnológica de rastrear os movimentos e contactos das pessoas nada tem de neutro e não duvidemos que existindo, a possibilidade da sua aplicação vai sempre depender dos pesos de uma balança. No limite, não será o caso desta pandemia, mas, mais tarde ou mais cedo, existirá uma ameaça que justificará a sua utilização e, possivelmente, legitimará a sua aplicação. Simplesmente porque sim, porque é um instrumento possível e, eventualmente, eficaz. E vale pouco a voluntariedade na utilização da tecnologia, já que a história e a ciência também nos ensinam o poder do medo e que a forma como se coloca a questão é determinante para a resposta à mesma. A pressão social fará o resto.

Vamos ter (em bom rigor, já temos) esta tecnologia entre nós e urge que esta não coloque em causa os nossos valores de privacidade e de respeito pela autonomia individual. Tal apenas será possível com o recentrar do debate no essencial: quem terá acesso aos dados e como se garantirá que estes serão geridos de acordo com o interesse dos seus proprietários, os cidadãos. Acreditamos que o caminho passará pela criação de uma entidade não dependente do Estado ou de qualquer entidade privada, que funcione democraticamente e seja independente de (potenciais) interesses políticos ou económicos. Não sendo assim, é possível que pós ou ainda em pandemia nos tenhamos que debruçar sobre as consequências negativas para o nosso modo de vida desta tecnologia.

Esperamos que, com distanciamento histórico, possamos olhar para este momento como um enorme desafio superado através de responsabilidade e respeito pelo auto-determinação. De outro modo, se embarcarmos em sistemas de controlo e monitorização não suficientemente enquadrados  e escrutinados, poderemos esperar impactos imprevisíveis, de tal modo que o distanciamento histórico marque 2020 como o ano em que aceitamos, sem de facto o saber, que não mais caminharemos na direção da igualdade de oportunidades, pois que alguns poderão vigiar e dominar os demais.

Miguel Ricou é Professor na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto – CINTESIS e Tiago Pereira é Coordenador do Gabinete de Crise COVID-19 da Ordem dos Psicólogos Portugueses