O Estado Novo nasceu do fracasso político, social, económico e financeiro da Primeira República, um regime dominado por uma oligarquia partidária, os Democráticos, primeiro chefiados por Afonso Costa, depois por António Maria da Silva. Votavam então cerca de 7% dos portugueses, só homens, e o governo ganhava sempre, ou quase sempre, as eleições.

Em 16 anos houve 46 governos e a instabilidade e violência política deixaram muitas centenas de mortos. Apesar da democracia, as prisões de oposicionistas, sobretudo de monárquicos e católicos, mas também de republicanos conservadores, eram rotina. As tentativas para pôr fim a esta situação – como a revolução de 14 de Maio, de Pimenta de Castro, e, mais tarde, o consulado sidonista – acabaram violentamente com a contrarrevolução democrática ou o assassinato do “Presidente-Rei”.

Esta situação levou a sucessivas conspirações político-militares.  Depois do fracasso do 18 de Abril de 1925, veio, em 28 de Maio de 1926, uma revolução militar de tenentes e capitães, que, a partir de Braga, triunfou sem resistência e foi aplaudida por todos os inimigos dos Democráticos, dos monárquicos integralistas aos sindicalistas.

Ou seja, a República Democrática caiu de podre, ainda jovem, também porque, na época, na Europa, as democracias estavam em crise: já havia o fascismo na Itália de Mussolini e a ditadura de Primo de Rivera em Espanha e o fantasma do Comunismo atirava os conservadores e as classes médias para o autoritarismo.

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Para duas gerações de portugueses, a democracia tinha sido, não o governo do povo, mas o governo e os desgovernos dos democráticos. Salazar beneficiou desse descrédito. Só que as gerações e as memórias de Primeira República passaram e, depois de 1945, a democracia impôs-se na Europa Ocidental.

O Estado (Novo) e a Revolução

Em 1974 foi a vez do velho Estado Novo cair. A passagem do 49º aniversário do 25 de Abril coincidiu com vários episódios trágico-cómicos do folhetim com que esta já madura democracia nos vai entretendo, entremeada com doses de propaganda sobre os horrores do Antigo Regime. Tudo isto obriga a alguma memória alternativa, mesmo com o risco de nos repetirmos.

O Estado Novo era um regime nacional-conservador, instaurado por Salazar com o apoio do Exército. Era autoritário, não democrático, e sobreviveu à Segunda Guerra Mundial graças à incompetência das oposições e à Guerra Fria. A partir de 1961, teve um prolongamento, devido à guerra de África e à trégua e divisão da oposição democrática que, em parte, apoiou o Regime na questão do Ultramar; e a uma onda de patriotismo popular, muito bem aproveitada e dinamizada pelo Governo até meados dos anos 60.

O pano de fundo económico, em números, mostra que, nos últimos quinze anos do Regime, o PIB do país passou de cerca 93.000 milhões para cerca de 343.000 milhões de Escudos, isto é, mais que triplicou. Apanhou a boleia das décadas de ouro da economia euroamericana e, através dos planos de Fomento, com grandes investimentos na electrificação e nas infraestruturas, iniciou a modernização do país e uma nova revolução industrial.

Ao mesmo tempo, apesar das diferenças político-institucionais com os seus congéneres europeus, o país integrou-se na economia internacional: foi fundador da OCDE, em 1948, e da EFTA, em 1960, ano em que aderiu ao Banco Mundial e ao FMI. E a partir de 1962 passou a participar no GATT. No plano político diplomático, foi fundador da NATO.

Esta modernização traduziu-se num grande crescimento da Economia, sobretudo nos anos finais até 73 e à crise do petróleo. Houve, no período, uma deslocação da mão-de-obra do sector primário (49% em 1950, para 34% em 1973); também a escolarização no ensino secundário oficial passou, nestes anos finais, de 46.000 em 1960-61 para 123.000 em 1973-74, e no ensino superior, no mesmo período, de 5,5% para 13,5%.

Mas, apesar disto, em 1974, o Estado Novo, com quase 50 anos, estava velho. O país tinha um problema político-institucional: um regime que, estava em contramão sistémica com a área político-geográfica e cultural onde se situava. E um regime que era como que um de fato feito à medida pelo e para o seu fundador, a partir de uma conjuntura inicial – os anos trinta dos totalitarismos e autoritarismos europeus e a reacção nacional às desgraças da República dos Democráticos. E Salazar – há que dizê-lo – não se preocupava muito com o que aconteceria depois dele.

O clima cultural português era europeu e apesar da Censura e da PIDE as pessoas que liam e viajavam acabavam por ler o que queriam; e as proibições acabavam por levar sobretudo os jovens universitários da burguesia e das classes médias a alinhar contra o Regime. Hoje, enquanto não chegarem cá em força os cancelamentos e as reescritas, não há restrições, mas infelizmente lê-se pouco, bastante menos do que se lia nesses tempos de proibição.

A questão do Ultramar acabou também por atirar muita gente das novas gerações para a direita, não por causa do da ideologia do Regime, mas por causa do país e da sua defesa.

A mudança veio, assim, por quem tinha criado o Regime – pelos militares e pela revolta dos militares. A esquerda soube então cavalgar essa onda, manipulando inocentes úteis e inúteis e ocupando as comissões reivindicativas. Antes queimara, através dos seus agentes, “conspirações alternativas”, como a do general Kaúlza de Arriaga; os spinolistas “queimaram-se”, no 16 de Março, e no 25 de Abril, o poder militar derrubou um regime cujo líder tratou, acima de tudo, de se render.

Repetiu-se uma regra da Primeira República. Nos movimentos de agitação e revolução de rua, em Lisboa, entre 1910 e 1926, o número de baixas era significativamente maior quando, de um lado e de outro, ou só de um lado, havia civis armados, do que quando as coisas eram só entre militares. Era, de resto, uma regra europeia observada desde a Alemanha de Weimar e anunciada pelo general von Seekt, quando do putsch de Kapp, em 1920: “Truppe schliest nicht auf Truppe”, ou seja, “a tropa não dispara contra a tropa”. Assim, o golpe de Kapp, apoiado pela Brigada de Marinha Ehrardt, foi derrotado não pelos militares, mas pela greve geral e pela burocracia de Weimar.

O PREC e o Povo

No 25 de Abril, a tropa também não disparou contra a tropa e o Doutor Marcelo Caetano foi para o quartel do Carmo para se render. Depois, as forças da Extrema-Esquerda – até ao início de 1976 com a cumplicidade activa da Esquerda e até da “direita” do regime – neutralizaram qualquer resistência ao tempo e ao modo da descolonização, por via da força e de medidas compulsivas, como prisões sem culpa formada, denúncias e humilhações públicas de centenas de pessoas. A criação de forças partidárias de direita que não se subordinavam à cartilha da Esquerda foi também assim impedida e reprimida.

Em menos de seis meses, a jovem democracia conseguia ter mais presos políticos nas cadeias do que o anterior regime no dia 25 de Abril. Isto sem contar com os agentes da PIDE-DGS.

A Esquerda democrática nada fez enquanto não ficou na linha de risco. Então, à volta de uma parte do PS e do Dr. Soares, juntamente com o povo da direita que, órfão de dirigentes, foi para a rua com quem lá estava, resistiu. Outros, numa geografia com alguma tradição, desceram do Minho até ao Tejo, fazendo à Esquerda comunista o que ela tinha feito, onde podia.

A tropa quase nunca disparou contra a tropa; mas a partir de 11 de Novembro, concluída a descolonização com a independência de Angola, já passava a fazer sentido corrigir o equilíbrio de forças – e foi o 25 de Novembro. Nesse dia, a extrema-esquerda, com os paraquedistas manipulados mais a Polícia Militar, foi vencida pela reacção dos Comandos, com a abstenção dos Fuzileiros e do PCP. O Dr. Cunhal não queria uma guerra civil que sabia que perdia. Depois vieram o Centrão e a Europa. Que ainda cá estão.