Nos últimos dias, a partir da morte às mãos de um polícia de um jovem de 17 anos de origem magrebina, Nahel Marzouk, a França incendiou-se. Simbolicamente e literalmente. As periferias das cidades francesas estão cheias de imigrantes de religião e cultura islâmica, cuja integração na comunidade nacional francesa é problemática, senão inexistente. É destes bairros periféricos que os amotinados partem para invadir os centros urbanos, convocados por mensagens passadas nas redes sociais.

Caixotes do lixo incendiados: 12.000; viaturas queimadas: 6.000; edifícios destruídos e vandalizados – escolas, bibliotecas, sedes municipais – mais de 1.000; esquadras de polícia e casernas das Compagnies Républicaines de Sécurité assaltadas: 254; saque e apedrejamento de lojas e centros comerciais; tentativa de homicídio de um autarca e da sua família; mais de 4 000 manifestantes detidos, mais de 700 polícias feridos. E não é só Paris nem as suas cidades-satélite que ardem: o rastilho propaga-se a Lyon, a Marselha, a Toulouse, a Estrasburgo, a toda a França.

Um povo na rua

A França e Paris têm uma longa tradição de violência política urbana, desde as Frondas de 1648 e 1653, da Revolução Francesa, das revoltas de 1848, até aos anos 30 do século passado, antes da guerra, da derrota, da ocupação, quando comunistas, socialistas, nacionalistas e fascistas se afrontavam na rua.

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Esta tradição prosseguiu ao longo de todo o século XX, à volta de crises como a da guerra da Argélia. E culminou com grande aparato em Maio de 68, com  um radicalismo estudantil inspirado por pensadores como Trotsky, Althusser, Sartre, e por heróis recém-consagrados pelo calendário revolucionário, como Mao Tsé-Tung, Che Guevara e Ho-Chi-Minh (trindade a que se rezava nas ruas de Paris e de Roma com o grito: “Maóoo, Ké, Ho Ki Min!”).

Com estes ou outros santos, as manifestações, alimentadas ideologicamente, como forma de contestar ou corrigir a democracia formal representativa e dar voz pública ao descontentamento, prosseguiram.

Nos últimos anos houve o fenómeno dos “gillets jaunes”, um fenómeno popular ou populista que baralhou os analistas e os politólogos. Foi um sinal de alarme, um alerta vindo das classes trabalhadoras e médias, vítimas da modernidade globalizante. Mas na Europa, o protesto violento vem hoje mais da esquerda do que da direita. A direita parece preferir a via democrática e legal do voto, com o reforço geral dos partidos nacionais identitários, na Suécia, na Finlândia e em  Espanha; ou na Itália, na Polónia e na Hungria, onde já estão no poder. Partidos a que chamam populistas (talvez por privilegiarem o voto – a arma do povo), e que parte dos media e dos comentadores tende a considerar uma “ameaça à democracia” (talvez porque os resultados da escolha democrática não se coadunem com a democraticidade de alguns democratas).

A explosão popular de protesto que mais recentemente teve lugar em França, com as manifestações contra a subida da idade da Reforma, também difíceis de classificar ideologicamente, mobilizou, durante semanas, milhões de franceses, obrigando o governo a usar meios constitucionais excepcionais para fazer passar a Lei. Ainda assim, a destruição, a queima e o saque não foram significativos.

A raiz do problema

Desta vez foi diferente. A violência das imagens, as chamas, a destruição, os mais de mil milhões de Euros de prejuízo, mas sobretudo as palavras de ordem gritadas pelos amotinados em fúria, transmitiam a sensação de que uma vaga nihilista se abatera sobre as cidades francesas para destruir os símbolos de uma sociedade que  excluía ou de que se auto-excluía toda uma classe, uma cultura, uma geração…. De onde é que aquilo saíra?

A quebra demográfica francesa e europeia, começada há mais ou menos meio século e então assinalada por Pierre Chaunu, bem como as crises económico-sociais nos países do Magrebe e da Francofonia, trazem estes imigrantes legais e ilegais, enquanto a globalização leva os empregos da indústria e de muitos serviços para longe da Europa.

É este o mundo que saiu do pós-Guerra Fria e das filosofias internacionalistas de Davos. Ora, precisamente porque não se sentem integrados em França e também já não pertencem às suas sociedades de raiz, há dezenas de milhares de jovens magrebinos mobilizáveis para a acção violenta contra o racismo de que se proclamam vítimas.

São ainda restos e malhas do império, da colonização francesa do Norte de África – a Argélia, a Tunísia, o protectorado de Marrocos. A França teria, em 2018, à volta de seis milhões de muçulmanos, isto é, mais ou menos 9% da população. Os muçulmanos eram, nessa altura, 8% da população da Suécia, 6,5% da do Reino Unido, 6% da da Alemanha, 5% da da Itália, e cerca de 5% de toda a União Europeia. Hoje, em França, chegarão aos 10%.

Estas populações de imigrantes legais e ilegais concentram-se nas periferias das grandes cidades, são tendencialmente endogâmicas e vão ficando em bairros pobres, que se transformam em ghettos, de onde vão saindo os franceses “de souche”.

Nahel Marzouk era um desses jovens desintegrados dos arrabaldes da grande cidade. Tinha tido alguns problemas com a Polícia e o Mercedes topo de gama que conduzia não era dele. E guiava a grande velocidade sem carta de condução, pelo que dois motards da Polícia o perseguiram e intimaram a parar, ao que Nahel não obedeceu, vindo a ser parado pelo trânsito. Em qualquer caso, o roubo de  um carro e a falta de carta não se punem com a morte e as circunstâncias factuais estão por apurar: disparou o polícia intencionalmente sobre o rapaz ou foi o facto de Nhel ter arrancado que desviou o tiro do agente,  que o atingiu mortalmente? O polícia está preso e a aguardar julgamento formal.

Consequências políticas

Qual o efeito político destes acontecimentos?

Como se vê pela facilidade de descer rua, a França é uma sociedade politizada e pronta a reagir. Já em 2005, numa conjuntura semelhante, muitas dezenas de milharES de imigrantes magrebinos tinham saído para a rua, causando desacatos e destruições que, desta vez, se multiplicaram.

Talvez para salvaguardar a ideia de concórdia e minimizar os efeitos dos motins no estrangeiro Macron tenha resistido a proclamar o Estado de Emergência que permitiria controlar mais facilmente a violência. Sobretudo não o terá querido fazer para não dar razão à direita nacionalista e conservadora, que insiste em dizer que a França pode estar à beira de uma guerra civil de baixa intensidade. Assim, distribuindo condenações, recomendando contenção às forças da ordem, apelando aos pais dos desordeiros e recebendo os 250 maires das localidades mais afectadas, Macron procurou uma solução à “centrão”.

À frente dos líderes das esquerdas unidas – que não conseguiram mobilizar os gillets jaunes nem os reformados para uma nova tomada da Bastilha –, Jean Luc Mélenchon de La France Insoumise veio, qual “conquistador do caos”, tomar o partido da desordem, clamando: “Os cães de guarda mandam-nos pedir calma. Nós pedimos justiça.” Na mesma linha de grande retórica, a Secretária Nacional da Europe Écologie – Les Verts, Martine Tondelier, criticando a Polícia, declarava na Sud-Radio: “Nunca vi um não-racializado ser morto por uma recusa de obediência à intimação”.

Mélenchon e os dirigentes da esquerda francesa, com excepção do Partido Comunista, embarcaram nesta linha radical de culpar o racismo da Polícia e justificar e absolver os jovens amotinados – comportamento que parece ter caído muito mal na opinião francesa. Fabian Roussel, o líder comunista, apelou à “calma e ao apaziguamento”, procurando sair da tutela da extrema-esquerda mélenchoniana, que chamava à “convergência da luta com os bairros”.

À direita, Zémmour e Marion Maréchal (a sobrinha de Marine Le Pen) criticaram a violência da esquerda radical e a atitude indecisa de Macron e insistiram na proclamação do Estado de Emergência. Foram também claros na classificação dos factos e na identificação dos protagonistas.

Marine Le Pen interveio no Parlamento para responder à chefe do Governo, Elisabeth Borne, e deixou ao Presidente do seu Partido, Jordan Bardella, as intervenções mediáticas em nome do Rassemblement.

Numa sondagem da Opinionway para a CNEWS de 6 de Julho que pedia aos franceses que escolhessem, entre 14 personalidades políticas, a mais capaz de resolver o problema da integração dos imigrantes magrebinos, Marine Le Pen ficava em primeiro lugar, com 27%; sendo que o segundo nome mais votado era o seu número 2, Jordan Bardella.  Macron ocupava o terceiro lugar e Mélenchon o sétimo.

No entanto, à frente de Le Pen e de todos, com 32% dos votos, ficava a resposta ganhadora: nenhuma das 14 personalidades políticas propostas tinha competência para resolver semelhante problema…

Post Scriptum: Por motivos vários (entre os quais uns dias de férias) só voltarei aqui na segunda quinzena de Agosto.