Narrativa dramática, autocrítica de um país em busca de redenção, jogo de espelhos e desfile de espectros, a “Pátria” de Guerra Junqueiro desconstrói uma certa mitologia nacional. Sendo «um desses livros que marcam época no desenvolvimento literário dum povo» e «instante fundamental na evolução morfológica do intelecto português», “Pátria” é, na expressão de Sampaio Bruno, «como que “Os Lusíadas” da decadência». Obra singular na história literária e no imaginário português, “Pátria” terá algo ainda a dizer ao Portugal de hoje.

Remontando a ideia ao traumatismo nacional decorrente do Ultimatum inglês de 11 de Janeiro de 1890, o que viria a ser a “Pátria” começou por chamar-se Portugal no Calvário, enunciador já da íntima relação patriotismo-misticismo. No ano seguinte, na sequência do trágico desfecho do 31 de Janeiro, muda o título para “Agonia” e, pouco antes da publicação, para “Pátria”. Longo e laborioso parêntesis no conjunto da obra junqueiriana, contraria o processo criativo do poeta, sofrendo modificações, cortes, e reescritas no correr do tempo e das circunstâncias, entre 1890 e 1895. Em carta, presumivelmente de Julho deste último ano, diz: «Acabo de escrever na “Agonia” esta deliciosa palavra — Fim. Saio da cadeia. Respiro.» E confessa: «Tudo o que na “Agonia” é artigo de fundo e Terreiro do Paço deu-me um trabalho monstruoso. Mas o livro, varrendo-lhe tal cisco, ficaria incompleto.»

Dedicada a José Falcão, Basílio Teles e José Pereira de Sampaio (Bruno), figuras cimeiras do movimento republicano ligadas ao levantamento do 31 de Janeiro, “Pátria” vem a público pelos primeiros dias de Fevereiro de 1896, no Porto, sem menção de editor nem local de impressão, figurando na capa apenas o nome do Autor, que se reserva “todos os direitos”.

Na imprensa, declarou: «Junqueiro ausenta-se não com medo a um processo, mas com temor a uma cilada. Se o processarem, ele estará no tribunal no dia que lhe marquem, para se defender». Assistiu em Espanha às repercussões do poema. E, como esperava, «o estrondo foi enorme. Cóleras, raivas espumantes, latidos truculentos, vendavais de aplausos. O governo, assombrado, nada fez».

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Polarizada entre o aplauso e o repúdio, foi extraordinária a recepção deste livro. Cinco dias bastaram para esgotar uma edição superior a seis milhares de exemplares, constituindo isso, na expressão de Sampaio Bruno, uma «fulminante excepção na modorra tradicional do nosso mercado» e um «documento de psicologia colectiva». Também no Brasil a obra provocou ruidosos e desencontrados juízos.

«Posto isto, chamo a atenção das pessoas criticamente competentes […] para o facto evidente de que a “Pátria” de Junqueiro é, não só a maior obra dos últimos trinta anos, mas a obra capital do que há até agora de nossa literatura. “Os Lusíadas” ocupam honradamente o segundo lugar». É a conhecida resposta que Fernando Pessoa deu, em 1914, ao inquérito sobre «o mais belo livro dos últimos trinta anos». Não pretendo agora discuti-la, mas lembro que em 1916, por carta a certo editor inglês, a avaliação de Pessoa ortónimo não parece ter sofrido alterações no que respeita à obra e seu autor.

De resto, como viu Eduardo Lourenço, a “Mensagem” «é incompreensível sem o fio temático que a liga à “Pátria”, onde, sob a caução de Oliveira Martins, pela primeira vez se assimila a nossa aventura coletiva à de uma ambígua loucura». Na mesma linha irá Hélder Macedo: «Para melhor se entender a obra de Pessoa, e muito especialmente a “Mensagem”, é necessário recuperar Junqueiro, e muito especialmente a “Pátria”». Tal releitura «permite entender o que ambos os poemas têm de mais perene, temperando o que há de anacronismo no sebastianismo da “Mensagem” e de circunstancial no republicanismo da “Pátria”».

Em “Pátria”, Unamuno, vê acentos de Jeremías, a confissão e o acto de contrição de todo um povo. «Allí, el patriotismo es poético, es creativo, es creador; allí la poesía es el más alto patriotismo”. Así, “entre cuantos libros patrióticos conozco y de varias patrias, el más patriótico, el más hondo y humano y universalmente patriótico es el poema “Pátria”.»

Guerra Junqueiro considerava a “Pátria” e “Os Simples” os seus melhores livros. «Entre fazer a “Pátria” e escrever o “Prometeu Libertado” hesitei muito. Por fim decidi-me pela “Pátria”, que é a visão do momento histórico português sub specie aeternitatis […] aquele livro era o que eu devia, naquele momento, à minha pátria. Era necessário, era urgente». Em síntese: «Nos versos da “Pátria” pus em forma ideal o problema português: o acesso da nação à santidade, a afirmação de serem crimes, na nossa história, o que em geral se considera como glória». Dois versos o ilustram: «Minhas glórias… infâmias e vergonhas / De ladrão, de pirata e de assassino!» Seria, pois, como que uma salvação pelo pecado, uma vez este purificado, vencido e remido pela dor. Desta perspectiva, deve ler-se a visão do Doido crucificado (isto é, Portugal) e o epílogo da “Pátria”.

O poeta não se enganava ao afirmar, em carta a Jaime Batalha Reis, ter conseguido, com “Pátria”, para o resto dos seus dias «uma matilha de ódios formidável». Também contra si mesmo haveria de sentir certas imputações do poema, justificando isso a nova edição cuja nota tem a data de “Abril de 1923”, menos de três meses antes do seu falecimento. Pese embora o extenso e profundo corte das passagens que considerou “inúteis”, “injustas” ou “de mau gosto”, afirma que «a ideia fundamental do poema, que o domina todo, do primeiro ao último verso, está ilesa: é o ressurgimento orgânico da Nação no espírito de Nun’Álvares e de Camões».

São infatigáveis os ódios velhos e certas figuras da história permanecem como que reféns deles. «O embuste mais inacreditável, se o enxertarem com destreza num ódio político ou religioso, tem logo seiva para alimento, deita vergônteas e dá frutos». Volvidos cem anos sobre a morte de Guerra Junqueiro, apura-se a exatidão do seu diagnóstico. À luz das duas questões apontadas há de pesar-se-lhe o passado e quase se lhe hipoteca o futuro, pois a própria crítica à sua obra literária, será ali enxertada.

Junqueiro é ainda um autor encruzilhado, um emaranhado compósito, porventura contraditório. Todavia, como adverte António Cândido Franco, muita da importância da sua poesia situa-se «entre uma afirmação que nega e uma negação que afirma». Também por isso ela «é refractária, como poucas, a leituras rígidas e inamovíveis.» De resto, «a contradição é-lhe congenital. Nela tudo é verdade. Daí a sua renitência em se deixar dizer. Daí ainda – continua Cândido Franco – a sua modernidade sem expunção possível, moderna, além do Moderno.»

Há anos que venho tentando uma aproximação ao poeta. Estou convicto de que a adiada abertura do “processo” Junqueiro ou a sua ressurreição, a acontecerem, passará por devolver-se-lhe a voz. Como? Antes de mais, pela publicação do que hoje se considera ser a obra completa de um autor, compreendendo-se a édita, a inédita e a dispersa.

Deste ponto de vista, e à pergunta sobre o que fica do centenário da morte de Guerra Junqueiro, diria – e não creio que haja exageração criticista neste juízo – que tudo terminou afinal em pólvora (quase) seca. Como se também o poeta, aos poucos, se transformasse em memória de uma memória, perdendo-se numa irrecuperável distância. As razões esquivam-se a diagnósticos apressados. Acreditemos no futuro. «Mistério… mistério… Invisivelmente, saudando a luz, as cotovias gorjeiam…»