Estava a desfrutar do meu bife da alcatra arouquesa, quando fiz desabar o mundo! Naquele momento, com garfo e faca nas mãos trementes, fiquei a saber que naquele meu terrível hábito de apostar na produção regional, contribuir para a economia local e para a diversidade genética da espécie bovídea, estava na verdade um dedo no gatilho da pistola que matou a mãe Terra!
Como se vem tornando costume nos últimos anos, já é muito difícil apreciar pequenas coisas descansado. Há sempre grupos, quais beatas moralmente superiores, que nos vêm apontar o dedo e chamar de muitos nomes, culpando-nos de tudo e mais alguma coisa, quando só queríamos desfrutar do nosso almoço. E onde havia isto de chegar? Ao prato, com certeza!
O que foi durante décadas, séculos e milénios um privilégio, comer um bife fez do plebeu incauto um cruel, ignorante assassino, alvo dum chorrilho de nomes e insultos em catadupa. Em pleno século XXI, comer carne de vaca é do mais maligno, malévolo que um ser humano pode fazer! É insustentável, é inumano, é cruel! Este é o pregão dos ambientalistas da periferia suburbana.
Numa qualquer capital ou grande urbe ocidental, de punho em riste, cartaz ao alto e slogan repetido em voz alta, rebeldes da extinção berram e esperneiam. Recorrem a vídeos de choque (sem referência temporal, localização ou contexto), onde vemos os animais a serem mal tratados. Servem o cruel propósito de chocar a multidão, agoniar e criar angústia àqueles que só queriam comer o seu bife em paz.
Certamente, admito sem pudores que a nossa dieta está sobrecarregada de proteína animal e que a produção industrial de carne provoca marés de problemas de saúde, ambientais e económicos. Aqui no nosso país, quem conhecer Leiria, sabe bem o cheiro que trespassa a cidade de quando em vez, quando se fazem descargas ilegais de esgotos animais para o rio. Quem foi à ilha de São Jorge, saberá que os níveis de gás metano são sobejamente mais elevados do que a norma aconselha. Quem passar pelo Alentejo irá certamente encontrar vacarias e pocilgas que deixam muito a desejar à salubridade.
É urgente, sim, rever as nossas escolhas dietéticas e reduzir o consumo de proteína de origem animal. O consumo de carne em demasia tem uma forte correlação com problemas de saúde, em especial o cancro do cólon. Portanto, pela nossa saúde, comer menos carne é algo bom. Nisso, resta pouca discussão e estamos de acordo.
No entanto, perdoem-me o whataboutism: e as plataformas de entrega? É que este tema teima incessantemente em passar debaixo dos radares das altas vozes do “anti-carnismo”. Parece que há um esquecimento seletivo de argumentos, em que facilmente se esquece que se estão a encher estômagos sobre miséria alheia. Esta forma nefasta de food-as-a-service é uma cadeia de valor assente em sofrimento humano, produção alimentar industrial e milhares de toneladas de resíduos sólidos criados diariamente.
Num corriqueiro prato que nos venha parar à porta de casa, encontramos o resultado do trabalho dos escravos que trabalham em cozinhas fantasma e dos escravos que transportam essas comidas. Se o prato escolhido tiver ingredientes fora de época, é bem possível que tenham sido produzidos em partes remotas do mundo e a sua pegada carbónica imensa. Nessas latitudes, as pessoas são exploradas, ecossistemas destruídos e os requisitos europeus de utilização de pesticidas é deitado fora, diluído com os químicos que languidamente descem pelos rios até a um qualquer mar exótico. Por outro lado, as caixas, embalagens, sacos e talheres descartáveis, amontoam-se pelos cantos da cidade, do país e do mundo. Portanto, aquele pacotinho que o senhor do Bangladesh levou ali ao apartamento do vizinho moralmente superior porque abomina quem come carne, é na verdade uma autêntica bomba de diversos gases de estufa, resíduos sólidos e sofrimento humano.
Devemos, sim, analisar e pensar a seriedade dos problemas da produção de carne em ambiente industrial. Mas também há que saber que ainda há muita gente que trata bem dos seus animais, que há controlo, que aqueles animais sacrificados tiveram uma boa vida e que cumpriram um papel social, económico e até ambiental. E com o mesmo ímpeto, a mesma vontade, deve-se condenar outros tipos de alimentação, de utilização de alimentos e modos de vida assentes no sofrimento humano, na má confeção e nos resíduos sólidos.
Nos dias que correm, milhares e milhares de pessoas trabalham todos os dias para encontrar as melhores soluções para alimentar 8 mil milhões de humanos, da melhor maneira que sabem, podem e conseguem. O caminho é difícil e complexo. Ainda há muito dogma e estigma. O proselitismo pende para um lado, a reação pende para o outro. Com tanta boca para alimentar e um mundo para salvar, temos de nos voltar a sentar à mesma mesa, pensar o que comer e como comer, para podermos continuar a fazê-lo de uma forma sustentável. Que a mesa volte a ser um sítio de diálogo e partilha, onde uns possam desfrutar o seu bife, os outros degustem a sua salada e que no fim, fiquemos todos satisfeitos.
Devemos sentar-nos à mesa e repensar o que e como comemos. Sobre que ombros realmente continuamos a comer. Temos de deixar estas trincheiras e perceber a alimentação e os processos de produção. Todos comemos, mas fica-se com o sabor amargo de que há uma luta entre o progresso contra o tradicionalismo. Que o que era devia deixar de ser. Agora. Já. Comer animais é mau, seja qual seja a sua proveniência ou condições de vida. Comer abacate importado do outro lado do mundo empacotado numa embalagem de plástico, trazido a casa por um senhor vindo de muito, muito longe, é bom. Contas bem feitas, nem vegan é só virtude, nem picanha é só pecado.