Daqui a três semanas a Fátima faz 59 anos. Nesse dia, os familiares mais próximos vão falar ou telefonar-se a propósito da data. Mas há uma coisa que não podem fazer: desejar pessoalmente os parabéns à Fátima. A razão é tragicamente simples. Há quase cinco anos ela sofreu dois aneurismas cerebrais no espaço de três dias. A intervenção cirúrgica a que foi submetida na sequência do primeiro conseguiu evitar o pior e, aparentemente, sem sequelas assinaláveis. Mas passadas poucas horas da recuperação do pós-operatório, um segundo episódio foi demolidor, causando danos irreversíveis no tronco cerebral.
Esse foi o diagnóstico prontamente feito pela equipa médica perante a família: não alimentem esperança porque só um milagre, que nunca vimos acontecer, pode permitir alguma recuperação. O milagre voltou a não acontecer.
Desde então, a Fátima está deitada numa cama numa unidade de cuidados continuados próxima de Viseu. Mantém as funções vitais – circulação, respiração, digestão – sem o auxílio de qualquer máquina. Mas de resto é como se o cérebro tivesse sido desligado do corpo.
A Fátima é minha irmã e é assim que a encontro quando a vou visitar. Um corpo fisicamente auto-suficiente mas desprovido de autonomia de movimentos, de alma e de espírito.
Um corpo que não se mexe e que não fala. A Fátima mantém os olhos abertos, mas não sabemos se consegue ver, o que vê e o que entende do que possa ver. O mesmo se passa com a audição. Será que ouve? E que sons? Será que reconhece as nossas vozes?
O marido e as filhas – o Zé, a Mariana e a Carolina — querem acreditar que sim, que ela, por vezes, parece reagir a estímulos sonoros ou visuais. Mas será só muita vontade de querer acreditar porque nenhum dos testes feitos ao longo destes quase cinco anos o confirmaram.
Também não sabemos se sente dor e se aquele corpo, subtraído do que nos faz gente, dispõe de algum conforto dentro das circunstâncias.
Mas há uma dúvida que custa ainda mais a gerir: será que a Fátima tem consciência, ainda que leve ou intermitente, da sua condição? Apesar de não conseguir comunicar connosco por nenhum meio, ela sabe em que estado está? E sofre com isso? Não temos uma resposta, nenhum médico nos consegue dar certezas. E às vezes até gostávamos de ser tranquilizados por uma daquelas chamadas “mentiras brancas”.
Como é natural, com um caso destes na família temos acompanhado com especial interesse o debate em curso sobre a eutanásia.
Não que o caso da Fátima pudesse alguma vez enquadrar-se nessa situação, é preciso que isso fique já claro.
O assunto já tem complexidade suficiente, dispensando ideias erradas. Nenhuma das propostas legislativas sobre a eutanásia que o Parlamento vai apreciar se poderia aplicar à Fátima. Por uma razão: todas elas exigem, sem margem para dúvidas ou excepções, que a decisão de antecipação da morte seja tomada pelo doente que, para isso, deve estar consciente e na plena posse das suas capacidades.
E a Fátima não está. Nessa condição, ninguém poderá decidir por ela – e bem, por todas as questões que isso poderia levantar.
Também a lei do testamento vital não se lhe poderia aplicar. A minha irmã não tem qualquer mecanismo de suporte para a manter funcionalmente em vida. Não está, como costuma dizer-se, “ligada à máquina”.
Nem se coloca a opção de deixar de receber tratamentos, porque os cuidados que requer são os básicos de alimentação, higiene, alguma fisioterapia para estimular os músculos e tratamentos simples para pequenas infecções ou constipações que apareçam.
Por isso, qualquer opção que a Fátima pudesse ter feito na elaboração do seu testamento vital não lhe seria agora aplicável – e confesso que nem sei se a lei entrou em vigor antes da sua e da nossa tragédia.
Mas independentemente das molduras e possibilidades dadas pela lei, em vigor ou em discussão, há nestas matérias uma questão que ocupa o centro do debate: devemos ter a liberdade de antecipar a nossa morte verificadas situações muito particulares? Se sim, como é que o Estado garante o exercício dessa liberdade?
Não preciso, como se entende, de sair da família mais próxima para ter a resposta cristalina a estas questões. Repito que o caso da minha irmã não seria elegível para uma situação de eutanásia nem para uma opção de cessação de tratamentos no âmbito do testamento vital.
Mas isso não impede que o dilema de fundo se coloque de igual forma ou até de forma mais dramática.
Nenhum de nós, na família, tem a mínima dúvida de que, se pudesse ser ouvida e a lei o permitisse, a Fátima escolheria a eutanásia. Por ela e por nós.
Nas famílias estas coisas vão sendo conversadas, colocando-se em cenários hipotéticos daqueles que esperamos sempre que nunca calhem aos que nos são mais queridos.
Também não temos dúvidas de que ela haveria de querer participar activamente no debate, discutindo e dando a sua opinião nos fóruns próprios.
Também sei que se essa era a sua firme vontade, a nossa seria sempre fazê-la cumprir.
Ela fá-lo-ia, em parte, para nos libertar do seu corpo. E nós iríamos cumprir para a libertar do seu corpo.
Porque ninguém pode ser condenado a ficar aprisionado no seu próprio corpo quando já nada mais existe.
E é isso que a Fátima é, uma prisioneira forçada do seu corpo. É assim há cinco anos e assim poderá permanecer muitos mais. Não sabemos quantos.
Por mais que nos queiramos iludir, aquela já não é a nossa Fátima, que nunca se resumiu a um corpo e às suas funções vitais.
É também em nome dela e de todas as Fátimas futuras que a lei deve ser mudada para permitir que, em circunstâncias bem definidas e de forma regulada, cada um possa escolher libertar-se do seu corpo. Ou não, de acordo com a sua vontade.