Calcula-se todos os dias que o nosso modo de vida esteja em perigo; e calcular que o nosso modo de vida está em perigo tornou-se um modo de vida.   É um modo de vida baseado em pressentimentos, em ânsias, e em avisos.   Sugere conhecimento do futuro.  O conhecimento do futuro transmite quase sempre a convicção de que a vida vai mudar para pior. Garante-nos que ao virar a esquina, ou ao comer um pêssego, irromperão um molosso desaustinado, um torso arcaico, um golpe de calor, e o populismo.

Este sentido de iminência é partilhado por muitos oradores públicos, comediantes e cientistas; e ainda por outros.  Quando perguntamos a quem a passa a sua vida assim a razão por que a passa desse modo obtemos um tipo de resposta muito reconhecível, e que mostra inclinação para a teodiceia.   A resposta é a de que, antes de a longo prazo estarmos todos mortos, a prazo mais curto a nossa vida irá mudar para pior.  E sabe-se isso porque se tem a certeza de que qualquer modo de vida familiar depende por definição de práticas reprováveis; e que tudo o que depende de práticas reprováveis está por definição ameaçado.

Surpreende porém que se ache que o que nos é mais familiar possa estar em perigo por definição.   Bem feitas as contas, o que é familiar é aquilo que sobreviveu a muitos perigos.  O que fazemos normalmente não é o que fazemos contra o que pode acontecer, mas o que fazemos porque certas coisas já nos aconteceram, e normalmente depois de as coisas nos acontecerem.  Nunca somos bem como que quem nos imagina o futuro acha que somos; é-nos familiar uma tendência razoável para fazer coisas.

Os devotos do perigo iminente não podem pelo contrário esperar um triunfo razoável das suas razões.  Se as suas razões triunfassem, morreriam num bunker com o resto de nós; e o seu triunfo não poderia ser observado por mais ninguém.   O que os move é antes a persistência do seu modo de vida, encorajado pelas palpitações que o perigo iminente não deixa de causar em quem o anuncia.  Não faz todavia sentido tentar compreender as suas motivações à base de psicologia política; as emoções são os enfeites hormonais dessas motivações.

As motivações de quem nos avisa que o nosso modo de vida está em perigo têm por isso de ser explicadas de outra maneira.   A chave para a solução é o facto de esses avisos constituírem precisamente um modo de vida para quem avisa.  A alegria e o alarme, a choradeira e a resistência criam comunidades sólidas, organizam tradições familiares, costumes partilhados e práticas duradouras.  Nada faz durar tanto as coisas como o pressentimento de que tudo o que é sólido se irá evaporar; como observou o astuto jurista nazi, o perigo iminente é garantia mais certa da estabilidade constitucional.

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