Politólogos chegaram à conclusão de que a última palavra em Os Lusíadas é a palavra “inveja.” A tese tornou-se consensual. Visto que o poema tem a reputação de ser sobre Portugal, supõe-se também que a sua última palavra não poderá deixar de conter uma descrição da característica mais portuguesa do país: aquilo a que um estrangeiro chamou memoravelmente “uma espécie de dor causada pelo sucesso aparente dos outros.”

Pode espantar que este consenso sobre uma emoção reprovável seja tão ubíquo. No Questionário de Camões que todos os anos as figuras públicas têm de preencher antes das férias a resposta ao quesito “O que eu detesto mais que tudo” é quase sempre “A inveja.” A razão é todavia fácil de compreender. A inveja é uma emoção reprovável que não imaginamos poder sentir; e que imaginamos prontamente nos terceiros que haja por perto. O nosso consenso sobre a inveja é realmente sobre os outros.

A superioridade e a fiabilidade de Os Lusíadas na descrição de características portuguesas pode ser detectada pelo teste da última palavra. Outras obras conhecidas de literatura portuguesa parecem ter um valor descritivo menor. Os Maias acaba com “subia.” Menina e Moça com “LAUS DEO.” A Morgadinha dos Canaviais acaba com “A Morgadinha dos Canaviais.” São conclusões que só não são decepcionantes porque estes livros não são Os Lusíadas. Um livro que acaba com “subia” não pode ser de ajuda. A Morgadinha dos Canaviais, a julgar pela sua última palavra, será aquilo a que no ramo se chama meta-ficção; também não é de fiar.

A melhor maneira de perceber uma palavra é perceber a frase de que faz parte: o que quem a usa está a querer dizer. No caso de Os Lusíadas será precisa paciência, visto que a frase em questão não é curta; tem oitenta e quatro palavras, e estende-se por doze versos. Tanto quanto se pode perceber, nessa frase não se declara que em Portugal haja níveis substanciais de inveja, ou qualquer outra coisa portuguesa. Reconhecemos todavia nela um género literário autóctone: a Candidatura à Bolsa. Luís de Camões (1524?-1580) dirige-se ao seu financiador putativo e explica-lhe porque é que, caso lhe conceda a bolsa, o mecenas poderá adquirir qualidades que até aí só lhe teriam ocorrido em sonhos.

A mais importante das qualidades prometidas, esclarece Camões, é uma inclinação castrense. Camões sugere que, por efeito de Os Lusíadas, o seu financiador a adquirirá em grau tal que se transformará não apenas numa reincarnação de Alexandre o Grande, como na de um Alexandre sem qualquer inveja de Aquiles (Aquiles e Alexandre foram na Antiguidade dois militares admiráveis.) Camões está a dizer que quem lhe der a bolsa não terá inveja de ninguém; e por isso a descrever um mecenas em quem Os Lusíadas extinguirão aquela que hoje consensualmente consideramos a principal qualidade portuguesa. Acha no fundo que Os Lusíadas nos pode transformar em estrangeiros.

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