Qualquer poema medíocre pode ser considerado medíocre pelas razões certas; e qualquer poema extraordinário pode ser considerado extraordinário pelas razões erradas: a dificuldade é com as razões que temos, e não com as qualidades que atribuímos aos poemas. “O sentimento dum ocidental”, um dos mais conhecidos poemas de Cesário Verde (1855-1886), é um tour de force celebrado com justiça, embora geralmente por razões erradas.

As principais têm a ver com Lisboa. O poema inclui muitas descrições de vários aspectos da cidade, desde lugares (o Aljube, a Sé) a profissões características (dentistas, cutileiros e as perenemente populares varinas); e além disso ilustraria uma ideia cosmopolita de Lisboa, servida por comboios e barcos. A ideia pôde pôr pessoas a suspirar por “Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!”: se os poetas são profetas e os poemas profecias, “O sentimento dum ocidental” intimaria um inter-rail.

Todas estas razões provêm do mesmo erro. O erro é achar que o poema é um documento histórico sobre Lisboa; e que pode ser usado para tirar conclusões sobre a iluminação a gás, ou a situação epidémica, ou o controle da prostituição. Por esta ordem de razões, a Divina Comédia informaria sobre o ordenamento urbanístico do Purgatório; e Os Maias sobre uma parte da freguesia de Alcântara antes da construção da ponte sobre o Tejo.

Mais interessante no poema de Cesário Verde é que nele se conta a história de alguém que passa umas horas a andar por Lisboa. A oportunidade para nos anunciar atracções locais, ou para propor remédios sociais de amplo espectro, é porém ignorada por Cesário Verde. “O real e a análise”, admite com pena, não são bons para fazer poesia. Pelo contrário, a pessoa que anda por Lisboa, e sobre quem sabemos pouco a não ser que é parecido com Cesário Verde, caracteriza-se sobretudo por nunca conseguir sair da cidade. O poema não será assim bem sobre os males do mundo, ou sobre Lisboa, mas sobre duas questões, muito mais difíceis: como é possível andar sem se sair do mesmo sítio? Que espécie de sítio é este donde não se consegue sair?

Na parte final do poema Cesário Verde dá uma resposta a essas duas perguntas. Diz que estamos “emparedados” nos “nebulosos corredores” da cidade; queixa-se do “vale escuro” das suas muralhas. Tinha deplorado já nela “um tecto fundo” com pouco oxigénio; e conclui com uma descrição de “prédios sepulcrais com dimensão de montes.” A razão por que não é possível sair de Lisboa, percebe-se no fim do poema, é porque Lisboa é um cemitério. Poucos reparam nisso: depois de tantas coisas pitorescas, de tantas intimações documentais, e de um poema tão comprido, é normal que a atenção dormite. Como observou outro poeta esplêndido a quem a questão também preocupava, e como talvez suspeitassem alguns leitores de “O sentimento dum ocidental”, “queres tu ver que hei-de estar morto?”

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