Trabalhar no atendimento ao público consiste num verdadeiro atentado diário à nossa sanidade mental. Consiste num exercício de tolerância, numa prova de autocontrole na qual passamos com muita dificuldade e sem nenhuma distinção.
Não me dão os bons dias porque não estão a ter um bom dia ou porque não querem que eu o tenha? Porque me ignoram? E porque não me agradecem?
Li (ou, provavelmente, ouvi) algures que o Homem sente sempre necessidade de se sentir superior, seja em relação ao cônjuge, ao amigo, ao colega, ao vizinho ou, quando todos estes lhe falham, ao seu animal de estimação. Constato tal facto ao verificar que o cliente sente uma incompreensível necessidade férrea de se sentir superior face ao colaborador.
Comprovei tal teoria nos últimos dois anos e meio (quase três) de contacto diário com o público. O cliente parece efetivamente demonstrar uma determinada tendência preferencial para rebaixar o empregado em detrimento de qualquer outro ser.
Contrariamente ao que seria de esperar do seu estado de espírito num dia de folga, férias ou num dia em que qualquer outro motivo o leva a estar dispensado das suas funções laborais, o cliente encontra-se frequentemente predisposto ao conflito e devotado à antipatia. Fazendo uso da ilustre máxima “o cliente tem sempre razão” este avança, destemido e sem constrangimentos, ao ataque. Trata-se de uma batalha sem regras para o lado do atacante, para quem tudo é válido, e de escassos recursos de defesa para o lado do injuriado. Assim, todas as concepções que se lhes apresentam ao espírito conseguem aprovação e passam à próxima fase: a ação.
Na sua lista de atos ofensivos há preferências claras. O versátil revirar de olhos, tão recorrentemente praticado. Os gestos de desdém, gesticulados preferencialmente com a mão direita: num gesto simples de rotação mão/pulso somos enxotados como quem se livra de uma mosca persistente. Consta ainda o olhar de esguelha, seguido da predileta ignorância: mantendo uma postura corporal estática, apenas os olhos do cliente se movem na nossa direção e, após estabelecido o contacto visual com o colaborador, muito bruscamente, a visão do cliente retoma a direção do corpo e nenhuma palavra ou gesto é proferida, nada dá a entender que nos notaram apesar de o terem claramente feito. Mas o pior é quando existe contacto directo, não só com o olhar mas também com o corpo. Quando falamos, o cliente tem a audácia de nos olhar nos olhos, escutar-nos e decidir ignorar. Talvez sejam surdos, pensamos inocentemente, há uma breve possibilidade de ser o caso mas, na maioria das vezes, o mesmo não se verifica uma vez que, se uma questão se lhes afigura na mente, os senhores clientes já acham oportuno notar a nossa presença: “Olhe, qual é o preço?”
O cliente tem sempre razão. Ou quer ter. E nessa batalha vale tudo. Tudo o que lhes vier à cabeça é digno de ser proferido em voz alta, devido à certeza de que o colaborador não irá ripostar. Pelo menos não nos mesmos modos em que o insulto foi proferido, tal muito provavelmente custar-nos-ia o emprego ou uma grande reprimenda. De modo a manter-nos empregados, todos os nossos atos necessitam de passar previamente por um meticuloso exercício de deliberação de modo a que os mesmos não comentam a audácia de ferir a suscetibilidade do atacante. Se não nos encontrássemos em funções laborais, a história já seria certamente outra.
Valham-nos aqueles que nos salvam, que nos agradecem e que nos ouvem, aqueles que nos notam e nos elogiam, aqueles que nos fazem ver que nem todo o mundo está perdido e que nos dão forças para continuarmos. Aqueles que, mesmo sem o saberem, nos dão as forças necessárias para aqui, nesta área, nos aguentarmos mais um bocadinho até que o peso da arrogância que nos foi dirigida e acumulada ao longos dos anos nos comece a empurrar para um emprego à secretária, um emprego sedentário e solitário em frente ao computador. Um emprego onde, pelo menos, nos encontramos privados do contacto direto com a complexidade e brutalidade do comportamento humano.