1. Logo a seguir ao orçamento do Estado para 2018 questionei-me aqui se era possível uma conversa razoável com os professores. Hoje, questiono-me se é possível negociar de forma séria com os sindicatos de professores. Trata-se de uma questão importante pois as anunciadas greves, a efetivarem-se, penalizam sobretudo os alunos de minorias e mais carenciados, como sugerem quer estudos académicos, aqui citados por Aguiar-Conraria, quer pelo senso comum (menos possibilidade nestes casos de que a família compense as falhas da escola). Por outro lado, o direito à greve deve ser sopesado com o direito à educação, ambos constitucionalmente garantidos.

As questões relevantes são duas: os professores têm direito à reposição integral do tempo de trabalho enquanto houve congelamento das remunerações? Subsidiariamente outra: é justo que esta reposição seja feita? Só uma resposta clara a estas questões dá uma base para uma negociação séria. Para lhes responder comecemos pelos factos antes de passar aos argumentos.

2. Aqui no Observador já foi feito um fact check sobre a afirmação de António Costa no debate parlamentar quinzenal, segundo o qual o governo nunca prometeu reconhecer o tempo integral aos professores, e confirmou-se a sua veracidade. Há factos adicionais que devem ser relembrados, pois só se compreende o descongelamento se se perceber o congelamento. Nos Orçamentos de 2011 a 2015, a norma de congelamento das carreiras em que a progressão era baseada no tempo, e que foi replicada nos vários orçamentos, dizia o seguinte: “o tempo de serviço prestado durante a vigência do presente artigo (…) não é contado para efeitos de promoção e progressão em todas as carreiras, cargos e ou categorias (…) bem como para efeitos de mudança de posição remuneratória ou categoria nos casos em que estas apenas dependam do decurso de determinado período de prestação de serviço”.

Em contrapartida, apesar de se proibirem valorizações remuneratórias, era dito que “mantêm-se todos os efeitos associados à avaliação do desempenho, nomeadamente a contabilização dos pontos.” Ora, o que esta e outras normas clarificam é que, durante todos esses anos, nas carreiras gerais com avaliação de desempenho (SIADAP), a avaliação deveria ser feita, seria contabilizada em pontos, embora não produzisse efeitos remuneratórios. Nas carreiras especiais, em que conta sobretudo o tempo para a progressão, o tempo não contava. Finalmente, abriu-se uma excepção para as carreiras especiais com várias categorias (e.g. militares), em que o tempo contaria, não para a progressão horizontal, mas para a promoção vertical.

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No que respeita ao congelamento, as diferentes carreiras foram tratadas diferencialmente porque são distintas: há carreiras especiais unicategoriais (professores do básico e secundário -PEBeS) com possibilidade de progressão até ao topo e carreiras especiais pluricategoriais em que alcançar o topo da carreira exige simultaneamente progressão e promoção derivado sobretudo do tempo (forças de segurança) ou do tempo e de concursos para promoção (professores do ensino superior). As carreiras são também diferentes pois o tempo necessário para uma valorização remuneratória para um trabalhador considerado Bom é de 4 anos nos professores do EBeS (nos 2.º, 3.º, 4.º, 6.º, 8.º e 10.º escalões), sendo de 10 anos nas carreiras gerais (e.g. técnicos superiores que têm também de ser licenciados) para a avaliação SIADAP de adequado.

Convém recordar também que a carreira docente do EBeS, que hoje é unicategorial, teve duas categorias aquando da criação da categoria de professor titular, há cerca de uma década. Como é sabido, por pressão sindical esta categoria foi eliminada. À luz das normas de congelamento dos OE, caso se tivesse mantido esta categoria, o tempo teria contado para efeito de promoção na carreira, à semelhança dos militares.

Em resumo, as sucessivas leis do OE foram claras quanto ao congelamento das carreiras, distinguindo três soluções distintas para três tipos de carreiras distintas: aquelas em que conta essencialmente: i) o tempo na progressão em carreiras unicategoriais, ii) o tempo para progressão em pluricategoriais pluricategorias, iii) os pontos da avaliação de desempenho (SIADAP).

Só no último Orçamento de Estado de 2018 o art.º 19, resultado de uma negociação política de última hora, vem consagrar uma excepção à regra referida no art.º 18 com a expressão ambígua de que “a expressão remuneratória do tempo de serviço… é considerada para definir o prazo e o modo para a sua concretização”. A prova de que a expressão é ambígua está na necessidade que teve o PEV de apresentar uma resolução para que seja considerado todo o tempo de serviço. Trata-se de uma recomendação, com óbvio significado político, mas que obviamente não se sobrepõe à lei.

Nunca é demais recordar os factos que constam do programa eleitoral do Partido Socialista (PS) e o programa de governo que explicita várias promessas cumpridas (abolição dos cortes salariais, abolição da sobretaxa de IRS e descongelamento gradual das carreiras na segunda metade da legislatura). A contagem do tempo de serviço durante o período de congelamento não consta nem de nenhum documento programático (nem do cenário macroeconómico). Sejamos sérios, as promessas eleitorais e as expectativas criadas para esta legislatura pelo PS foram estas. A temática, que é nova (!), da contagem do tempo de serviço não está em lado nenhum até 2017. Só com o OE2018 ela surgiu.

3. Uma condição necessária, não suficiente, para a aplicação da justiça é tratar igual aquilo que é igual e diferente aquilo que é diferente. Nunca saberemos o que é justo, pois as modalidades do tratamento diferenciado de situações desiguais é sempre motivo de discordância, mas podemos saber o que é injusto se houver um tratamento semelhante de situações desiguais. Tratar da mesma maneira (contagem de tempo integral) situações diferentes é injusto.

Considere-se a situação de partida com os vencimentos brutos de um docente do EBeS no primeiro ano do 2.º escalão (1709,6€) com um técnico superior no primeiro ano do 4.º escalão (1613,42€). Qual o efeito da não contagem de tempo do primeiro e da acumulação de pontos do segundo (o que como referimos está de acordo com a letra das leis do OE até ao OE2018)? Ambos permanecem no mesmo escalão. O primeiro, porque o tempo não contou, permanece a 4 anos de subir de escalão; o segundo, porque acumulou 7 pontos e está a 3 anos de subir de escalão (necessita ainda de 3 pontos para chegar aos 10 pontos). Há aqui uma desigualdade desfavorável ao professor, pois o técnico acumulou pontos e o professor não acumulou tempo.

Consideremos agora a hipótese oposta de contabilização integral do tempo dos professores. Esse professor passaria para o 4.º ano do 3.º escalão (1864,19€) e ficaria à beira de passar para o 4.º escalão (1982,4€) e o técnico superior fica no mesmo escalão. São estas situações justas? A não contagem integral do tempo dos professores significaria um “apagão” do tempo que não se verifica nas carreiras gerais sujeitas a SIADAP. A contagem integral, significaria um prémio excessivo comparado com outras carreiras. O que significa que uma solução justa não pode assentar nem num caso limite, nem no outro.

4. Se se aceitasse, por absurdo, a contabilização integral do tempo dos professores, algo nunca prometido, ter-se-ia por razões de justiça, e do princípio constitucional da igualdade, de fazer essa contabilização em todas as carreiras, gerais e especiais da função pública. Lembro apenas algumas. As progressões, entre 2011 e 2017, estiveram congeladas nos professores do ensino superior universitário e politécnico, nos investigadores, nas forças de segurança, na magistratura e nos oficiais de justiça. As excepções foram as previstas na lei, relacionadas com promoções associadas geralmente a concursos.

O que pode ser então uma solução justa? Há várias respostas e por isso existe campo de negociação. Uma é a de que a progressão dos professores relativamente aos seus escalões (por tempo) deverá ser proporcional à progressão dos trabalhadores das carreiras gerais (por pontos SIADAP) em relação aos seus. Assim, como estes, por exemplo os técnicos superiores, nestes 7 anos vão “progredir” 7/10 de um “escalão”, a progressão dos docentes deverá ser 7/10 de uma posição indiciária, ou seja 7/10*4*365 dias, ou seja, dois anos 9 meses e 22 dias, que é aproximadamente a proposta do governo.

Seja este ou outro o consenso, uma negociação séria deve partir do pressuposto de que o governo tem toda a legitimidade para partir do quase zero em termos de contagem de tempo, particularmente se nos focarmos nos OE2011 a OE2017 e nas promessas eleitorais e do seu programa, e os sindicatos podem partir dos 9 anos, 4 meses e 2 dias. Nem governo, nem sindicatos podem, a bem da comunidade educativa e do país, ficar no seu ponto de partida nesta negociação.

5. O leitor atento terá reparado que, antes de discutir se há ou não recursos necessários para as remunerações de acordo com a contagem integral do tempo, abordei a questão da justiça. Se não for justo, a questão torna-se espúria. E se, por hipótese, fosse, teríamos de analisar não as verbas para os professores, mas as verbas para a consideração integral do tempo em todas as carreiras da administração pública onde a avaliação de desempenho não é o critério essencial da progressão. As outras carreiras especiais reivindicam já o mesmo que os professores e têm toda a legitimidade para o fazer. O que significa que a dimensão dos recursos necessários para repor o tempo integral em todas as carreiras é provavelmente muito superior aos 600 milhões anuais de que se fala.

Como financiaríamos este acréscimo de despesa? Aumentando impostos? Agravando o défice e a dívida explícita? Aumentando o endividamento implícito, como propõem os sindicatos, em que os professores (e restantes trabalhadores com tempo congelado) ficariam com um crédito sobre o Estado, recebendo a primeira tranche agora? São, de facto, as maneiras usuais como lidámos com as finanças públicas no passado, mas de muito má memória — endividar agora ou prometer despesa para o futuro. Na necessária solução de negociação, nem é recomendável aumento de endividamento nem de impostos. Deve-se contabilizar já o custo de médio prazo do acordo e, como estabelece o OE2018, deve ser compatível com os recursos disponíveis.

6. Termino com a dimensão necessariamente política desta questão. De 2011 a 2015, a grande maioria dos portugueses, no público e no privado, viu decair os seus rendimentos. Este governo PS tem implementado uma política de devolução moderada de rendimentos e de direitos, por razões de estratégia económica e de justiça social, que é uma posição intermédia entre aquilo que seria uma política de contração de procura interna e de reposição muito mais moderada de PSD-CDS, caso fossem governo, e de uma satisfação de todas as reivindicações sindicais de PCP, Bloco e Verdes. Que os partidos à esquerda do PS sejam despesistas e discordem da redução do défice e das regras orçamentais, já sabemos, mas não convinha porem em causa a estabilidade orçamental desta e da próxima governação.

O que surpreende é que PSD e CDS, que sempre criticaram os sindicatos, venham agora, à boleia da luta dos professores, afirmar que são reivindicações justas e equilibradas e que nada têm a ver com isto pois é um problema do governo, não só não apresentando propostas no caso dos professores como avançando já com subsídios para o aumento da natalidade. A campanha eleitoral definitivamente já começou, mas espero que os portugueses em geral, e os professores em particular, sejam sensatos e razoáveis nas suas ambições, para que, havendo verdadeira vontade negocial, se chegue a uma solução justa, económica e orçamentalmente sustentável.