Muito se tem falado de Psicoterapia nos últimos tempos. Por princípio, eu diria que isso seria uma muito boa notícia. Há muitos anos que me tenho dedicado a questões ligadas à identidade da Psicologia. Sou psicólogo há mais de 25 anos e Psicólogo Clínico e da Saúde desde que existem especialidades na Ordem dos Psicólogos Portugueses.

Foi de facto a regulação da profissão de Psicólogos e de Psicólogas, com a criação da Ordem dos Psicólogos Portugueses, que promoveu, definitivamente, uma reflexão sobre o trabalho, não só na área da Psicologia, mas também em outras áreas da intervenção em saúde mental. E foi talvez o sucesso desta afirmação de psicólogos e psicólogas que abriu caminho a que outros, eventualmente não pelas melhores razões, começassem a tentar fazer uma reflexão sobre algumas das Intervenções Psicológicas, sobre o que significam, quais os seus objetivos e quais as diferenças entre elas. Foi também nesta sequência que começaram a surgir um conjunto de outras identidades ao redor desta área, tão maltratada durante tanto tempo. É por isso que receio que esta recente discussão, que acontece sobretudo no espaço mediático, não seja, afinal, uma tão boa notícia e que não seja motivada pelo desejo de oferecer melhores serviços às pessoas.

Conseguir distinguir, sobretudo para o grande público, o que é a Psicoterapia e o que é a Intervenção Psicológica Clínica não psicoterapêutica não é uma tarefa fácil. Na verdade, não existem consensos internacionais sobre o tema e torna-se muito difícil conseguir distinções claras que não reduzam uma ou outra prática e que tenham o rigor suficiente que as tornem indiscutíveis e úteis, sobretudo para o público.

Mas existem algumas certezas. A primeira é que Psicoterapia foi criada com base no modelo médico como uma resposta para a intervenção na doença mental, antes mesmo de existir uma profissão diretamente ligada à ciência psicologia. Também por isso a Psicoterapia é uma atividade que não é exclusiva dos psicólogos, mas que foi muito promovida por estes através do grande desenvolvimento da ciência psicológica, dando origem a muitos modelos diversos de psicoterapia. A segunda é que cada psicoterapia é baseada num modelo psicológico específico, dos múltiplos existentes. E é por isso mesmo que dificilmente poderemos falar em “psicoterapia”, mas sim em “psicoterapias” já que estas têm diferenças marcadas entre elas, partilhando, sobretudo, um conjunto de características que acabaram, por isso mesmo, por serem apelidadas de “fatores comuns”. Aliás, mantém-se aberta ainda hoje a discussão sobre o que resulta mais nas intervenções psicoterapêuticas, se as técnicas específicas de cada uma, se os fatores comuns a todas elas, fatores esses que não deixam de ser a base da intervenção psicológica.

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Lembro-me bem do tempo em que a discussão nos meios académicos e profissionais se centrava em definir qual era o melhor modelo psicoterapêutico. As pessoas quase se zangavam umas com as outras na tentativa de defender a sua perspetiva da compreensão da pessoa. Nessa altura, esta discussão era tida entre psiquiatras e psicólogos e não passava pela cabeça de ninguém que outros profissionais o pudessem fazer também. Falávamos de pequenos nichos, de discussões internas e fora do contexto mediático, típicas de áreas em crescimento e maturação. Hoje, graças a uma acrescida capacidade de organização e a uma maturidade científica, conseguiu-se, eu diria finalmente, que a saúde mental começasse a ter o reconhecimento que lhe é devido e sem o qual sempre faltaram meios para promover o que de positivo o trabalho nesta área pode trazer às pessoas e à sociedade. Também por isso se terminou a discussão sobre qual seria a melhor psicoterapia estando, aparentemente, a ser substituída por uma outra, a da autonomização das psicoterapias em uma ou em várias profissões diversas, isso ainda não percebi.

É este enquadramento que me faz considerar esta discussão estéril. Nem a Ordem dos Psicólogos nem a Ordem dos Médicos estão a tentar tomar conta seja do que for. A realidade não mudou. A Psicoterapia é, e sempre foi, uma especialidade ligada às profissões da saúde, tradicionalmente à Medicina, primeiro, e à Psicologia depois. O que não me parece razoável é defender que os psicoterapeutas devam agora abdicar de uma formação e treino de base em saúde mental com centenas de horas. O que parece ser defendido por alguns é que a formação, treino e prática profissional em Psiquiatria e em Psicologia não é importante para se beneficiar mais da formação em Psicoterapia. O que parece ser defendido é que se acabem com as profissões e se promovam apenas as especialidades, numa aproximação à sociedade líquida de Bauman, onde a responsabilidade deve estar toda na pessoa que aceita recorrer aos serviços de alguém e nada na pessoa que oferece esses mesmos serviços. O que parece ainda ser defendido é que a regulação das psicoterapias seja entregue a cada uma das Associações Públicas Profissionais que as representam.

As psicoterapias, desde que as profissões foram reguladas, nunca estiveram desreguladas, uma vez que as Associações que de facto formam especialistas de qualidade são reconhecidas pelas Ordens Profissionais, que não têm conflitos de interesse neste mesmo reconhecimento. A única coisa que as Ordens Profissionais da Saúde procuram, nomeadamente a dos Médicos e dos Psicólogos, é precisamente garantir um exercício rigoroso, competente e ético das profissões. Não me parece que transformar modelos de intervenção em profissões contribua para esse objetivo. Não me parece ainda que ter engenheiros, gestores, filósofos, praticantes de terapias alternativas ou outras identidades sem formação de base em saúde mental a praticar e a gerir Associações de Psicoterapia ajude na concretização deste objetivo. Um psicólogo para ser psicoterapeuta terá de ter formação e treino em psicologia (cerca de 10000 horas) e beneficiar depois de mais formação e treino (cerca de 650 horas) numa determinada psicoterapia. O mesmo acontecerá com qualquer outro profissional de saúde mental que pertença a profissões da saúde reguladas.

Quero acreditar que esta discussão recente, que confesso não compreender bem, se deve, sobretudo, a alguma falta de reflexão e não a mais uma manifestação de uma sociedade que se vai tornando cada vez mais de desconfiança, promovendo a polarização e conduzindo a um caminho de desregulação que mais não fará do que deixar as pessoas mais sozinhas e mais vulneráveis.