A frequência com que me deparo com o insólito tem vindo a aumentar nos últimos tempos. É um facto que a minha profissão me dá acesso privilegiado a situações em que a probabilidade de tal acontecer é maior do que a do cidadão comum. Afinal, nem todos frequentamos urgências psiquiátricas às três da manhã. Mas atrever-me-ia a afirmar que o que no passado sucedia primariamente no domínio delimitado das quatro paredes de um hospital como o meu, cada vez mais transborda para a arena pública.

Já pensava nisto há algum tempo quando recentemente li a notícia da cidadã holandesa que torceu o pescoço a uma gaivota em Lisboa. É uma situação trágica e bizarra em que por um lado é impossível não sentir pena dos envolvidos (gaivota e mulher) e por outro não se pode deixar de abanar a cabeça em estupefação.

Não vou tecer diagnósticos fantasiosos, e consequentemente inadequados, num caso que não conheço a fundo, mas há uma reflexão que pode ser feita acerca de uma sociedade em que episódios desta drástica natureza acontecem com a mesma frequência alarmante de um qualquer escândalo político. Algo de muito errado está a passar-se, e as pessoas outrora denominadas “normais” (o termo é usado aqui em toda a sua amplitude) estão a escorregar progressivamente rumo ao vale da insanidade.

Na boa tradição popular da qual eu não escapo, tenta-se o mais rapidamente possível colocar a culpa nos ombros de alguém ou de qualquer coisa. Consumo de álcool, drogas, redes sociais, leviandade, lazer a mais… Tudo é válido no jogo da culpabilização. E com isto não quero dizer que estas variáveis não devam ser contempladas na equação. Digo, contudo, que são sintomas de um mal bem maior, uma febre que indica um processo infecioso oculto.

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É de estranhar que com a alienação constante dos últimos anos as pessoas andem doidas? Que com pandemias atrás de pandemias até perder de vista, quase sempre ininteligíveis, na saúde, na economia, no mundo laboral, na esfera social para dar alguns exemplos, nos apeteça estrangular tudo o que mexe?

Da maneira que o mundo anda, reagir com loucura pode tornar-se a única opção minimamente sã numa sociedade que nos encurrala. Não é de admirar que a reação de alguns se assemelhe à de um gato assanhado. O sistema está sobrecarregado e as falhas dos seus elementos são os sinais de alerta.

Tenta-se, contudo, ignorar este facto inconveniente. É mais fácil apontar o dedo a um “maluco” qualquer do que admitir que o mundo está a assumir uma trajetória cada vez mais preocupante. O pensamento em si é suficiente para afastar da mente de muitos qualquer réstia de reflexão crítica. E remar contra a maré custa bastante.

Mais vale traçar uma linha confortável entre “nós”, os razoáveis, e “eles”, os desvairados. Mas se há algo que a minha experiência me ensinou é que tudo pode mudar, por vezes basta só um segundo para que quem está do lado conveniente da secretária passe para o lado oposto. Para que o médico se transforme em louco. A única maneira de o evitar é estar atento aos sintomas, apontá-los e identificar o problema de base antes que seja tarde demais. Dá trabalho e é cansativo, mas pode evitar uma desgraça a longo prazo para o próprio e para os que o rodeiam. Este trabalho pesado não pode, porém, ser de responsabilidade individual; devia estar a cargo do mesmo sistema que causa a doença. Afinal de contas é no interesse desse mesmo sistema evitar que se torça o pescoço a gaivotas a torto e a direito. Quem passa tempo a praticar esta atividade não tem disponibilidade nem cabeça para ser escravizado e usado. E isso sim seria a verdadeira tragédia da idade moderna.