Existe uma dicotomia que se tem tornado cada vez mais desinteressante e ausente de utilidade, mas que ainda vinga nas representações sociais dos indivíduos e cria verdadeiras barreiras à apreciação e à compreensão do mundo de uma forma mais completa: a separação entre arte e ciência. Defende-se, por um lado, o movimento expressivo, a emoção, o encanto do traço e da pintura, a beldade da cor e da forma; por outro, a exatidão, o metodismo, os processos objetivos, a dedução e a indução. E com esta mundivisão, para além de criarmos noções redutoras em torno dos conceitos de arte e de ciência, justificamos a construção e a apreensão de conhecimentos em processos nos quais ambas as áreas surgem estanques e mutuamente incontactáveis. Contudo, a realidade em que vivemos é muito mais vasta e matizada do que a visão simplista que aparentemente temos dela.

Vou invocar o exemplo com o qual estou mais familiarizado para prosseguir com a minha argumentação da perda de conteúdo que é colocar em dois frascos diferentes estas áreas do saber humano: a poesia. Em 2019, foi publicado um paper meu na edição seriada IS Working Papers, promovida pelo Instituto de Sociologia do Porto, sobre (um)a (possível) aplicação da Teoria Simbólica de Norbert Elias à análise da construção da escrita e do perfil poéticos de Fernando Pessoa, dos seus principais heterónimos (Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos) e da sua obra Mensagem. Já no ano de 2020 saiu, em março, na Plataforma Barómetro Social, também organizada por aquele instituto, um pequeno artigo de opinião da minha autoria, com algumas referências bibliográficas de relevo, acerca do projeto Tatuar a Cidade, onde poemas de autores portugueses dos séculos XIX e XX foram pintados em diversos sítios das várias freguesias do concelho de Vila Nova de Gaia. Nestes dois casos, a tentativa foi a de acionar a teoria científica sociológica no estudo de algumas construções artístico-literárias, sendo a poesia o objeto de estudo e o elo fulcral.

A grande conclusão alcançada nas duas publicações foi, sem dúvida alguma, a de que é possível relacionar os elementos das artes com os produtos da ciência, atingindo-se assim enormes vantagens. No caso do paper, a sociologia histórica e humanista de Elias encontrou em Pessoa uma verdadeira metáfora dos valores que defende, com um sujeito lírico a valorizar não só o símbolo, a(s) linguagem(ns), a pluralidade das identidades e a fragmentação das mesmas ou o fingimento – todas estas características de um verdadeiro ser humano reflexivo –, mas também os feitos históricos e a emancipação nacional através do espírito, a deterioração do dualismo natureza-cultura ou as mudanças vertiginosas proporcionadas pelo modernismo, pontos que podem tanto ser cantados por um artista como estudados por um cientista social. Relativamente ao texto sobre o Tatuar a Cidade em Gaia, conseguimos obter um caso concreto em que a poesia, ao circular pela cidade sob a forma de versos únicos, possibilita-nos uma análise fundamentada acerca do espaço público e da forma como a manutenção do mesmo potencia uma população mais interessada e participativa na construção das suas ruas, dos seus bairros, dos seus sítios de vida.

Assim, não faz de todo sentido isolar a arte da ciência ou a ciência da arte. Produzir um corpo de conhecimentos e resultados científicos pode ser também um modo de apresentação artística: dos objetivos alcançados, do investigador e, até, do próprio contexto onde tudo se desenrolou. Aliamos, portanto, a criatividade ao rigor. Mas fazer arte pode igualmente constituir um ato científico, se formos capazes de perspetivar a estética, a arquitetura, a escultura e a pintura, a literatura e a poesia com um olhar ético, munido de teoria e de estatística e de capacidade de literacia e argumentativa. Basicamente, se atribuirmos à arte o seu outro lado humano – o da tentativa como método e o da expressão original como inteligência e proficiência.

O verdadeiro âmago da sabedoria artística e científica reside precisamente aqui, na aptidão para mirar o horizonte e descobrir-lhe beleza e funcionalidade no sonho – o sonho em que vivemos num mundo onde conhecer e criar se tornem um uno de esperança e confiança.

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