Um grupo de pessoas pode juntar-se para fazer várias coisas: uma delas, entre muitas, é  trabalhar, o que tende a significar, essencialmente, o desenvolvimento de uma  determinada acção a troco de uma determinada recompensa. Quase como, na nossa  infância, a fugir perto, decidíamos brincar ao toca-e-foge: “agora és tu, agora eu”,  enquanto, de calcanhares ao rabo, perseguíamos o target que, hoje, passou a ser um  resultado profissional a prestar junto de falanges ao alto sempre em tic-tac.

Admite-se, no  toca-e-foge, terem existido, até, distracções, como a Dona Filomena, que do horizonte  trazia uma saca sem fundo de gelados ou, do lado oposto, os olhos dos outros miúdos  que, sentados à ponta do recreio, acompanhavam a trajectória da corrida partilhada à vez  entre alguns, esperando, de figas presas ao peito, um tropeção-gargalhada. O tropeção,  às vezes, acontecia e o desfecho era inevitável: uma nova tentativa quase imediata,  depois, claro, da risota geral. “Não sabe correr!”, gritavam as crianças de atacadores  sempre por apertar e pés virgens.

A questão: qual o ponto de contacto entre a vida  profissional, de hoje, e o toca-e-foge que em tempos rendia castigos eternos de canto de  sala? Este: percentagens; critérios de rendimento; cálculo de impostos; exercícios fiscais;  jurisdições. Onde? Num só sítio: nenhum. Isto não serve nem para tentativa falhada de  quase ponto de contacto entre algo intenso que fundou a nossa vida, lá no começo, e algo  que é uma ocupação vitalícia do nosso existir, reiteradamente, a lume brando.

Aliás, todos  esses levantares de crista sem vento são precisamente o oposto de qualquer ponto de  contacto entre o que fomos e o que podemos vir a ser. Quando, ainda a despir-se de  horizontes longe, a Dona Filomena, dos gelados, gritava “quem ganhar, come dois”  ninguém ouvia, em complemento, “isto se o cone da TSU for dedutível no total do IRC com raspas de CCT”. Nada disso: a Dona Filomena, livre de teorias distantes, instigava-nos, simplesmente, com meio grito sereno e um sorriso, a uma recompensa maior a troco  da exacta e mesma corrida, mas em eficácia redobrada. A Dona Filomena percebia de  gerir humanidades: os aplicados ganhavam gelados em dobro para breve  descontentamento das crianças que de atacadores ainda soltos entenderiam, a seu  tempo, dever parar com as lamúrias por alegadamente não conseguirem correr à revelia de um estridente “ainda caímos!”.

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Ouvia-se muitas coisas no recreio e as distracções, na  verdade, eram múltiplas. A urgência do que se quer dizer: o que mantinha o toca-e-foge,  distribuidor inato de glórias distintas e diárias, não eram especificidades complexas da  corrida ou tecnicismos genéricos aplicados a situações hipotéticas. Aquilo que nos fazia  perseguir o target da altura, dia após dia, era algo simples: a Paixão. Onde anda isto,  actualmente? O antigo campeão de toca-e-foge de há décadas foi convertido num  recordista inconfundível de suspiros desesperados, largados em copas de dez metros  quadrados sem janelas.

Outra vez: a paixão que nos fazia correr o mundo, onde está?! O  vice-campeão de toca-e-foge, nos dias actuais, pulula de emprego em emprego com os  atacadores já não apertados, indo se sentando, todos os finais de tarde, de braços  caídos, no banco das crianças dos pés virgens que se tornaram, inevitavelmente, em  velhos e velhas amargurados e a pergunta impõe-se, uma vez mais, a mesma: onde está,  afinal, a paixão que em nós sempre houve? Não se sabe.

Sabe-se que as intenções de  promover a economia do Meu País, continuam a resumir-se a malabarismos rápidos de  termos técnicos voláteis quando, se alguém se dignasse a ouvir a Dona Filomena, apesar  de já refém de uma velhice que a sociedade insiste em não aproveitar e descarta,  encontraria uma solução eficaz: “Dois gelados!”. Simples: dois gelados, de forma  transparente e sem apetrechos de maior, que nos faziam levar a faca aos dentes e  enfrentar fosse um meia-leca veloz de metro e pouco ou um mundo abismal totalmente  atroz de alma em soco.

Vejam bem: “dois gelados” resumem a paixão que as pessoas mais que nunca parecem precisar. A paixão que uma taxa não encontra. A paixão que  anglicismos patetas não encontram. A paixão que nos expande o espírito e é a única  coisa, se alguém quiser realmente relançar a economia – ou a vida, ou tudo -, só precisa.  A paixão que as pessoas necessitam para ir entendendo e decifrando, finalmente, a roda  de ratinho na qual o interesse pela vida humana se dilui em passo corrida já longe do  toca-e-foge que, em tempos, nos salvou e, se quisermos, pode sempre voltar a salvar.