O ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (CTES), Manuel Heitor, ultrapassou várias linhas vermelhas. Legalizou a “medicina tradicional chinesa” deixando ficar no fundo da gaveta a ciência, contrariando a universidade, o conhecimento e o método científico. Uma decisão com consequências devastadoras imprevisíveis para milhares de pessoas. Mais recentemente, resolveu dar a cara e o cunho pessoal pelo ventilador Atena, em mais uma história com contornos infelizes, em que o ministro deixa a ciência de lado. Uma situação que só não teve consequências mais graves graças aos técnicos do Infarmed, que denunciaram que os ventiladores não estavam certificados, e ao bom senso dos médicos. Quanto custa ao país uma má decisão contrariando a ciência?

Onde estão as raízes da estranha obsessão do ministro em anunciar novas escolas médicas? Como é que um governante se atreve a pressionar a A3ES (Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior), responsável por tomar decisões depois de analisar todos os critérios das potenciais candidaturas que, tanto quanto é do nosso conhecimento, nem sequer ainda existem? Será que o motivo para tal anúncio está relacionado com o atual momento político? Ou será apenas uma questão de estilo de quem já demonstrou publicamente não se dar bem com a democracia? E será que precisamos mesmo de mais escolas médicas públicas, pagas por todos os Portugueses, quando já somos dos países da OCDE que mais médicos forma? O que é que nos dizem os dados oficiais para Portugal (não apenas os dados relativos ao SNS)? A verdade, tantas vezes escamoteada para justificar incompetência ou incapacidade, é a seguinte (e pode ser confirmada através dos documentos oficiais): segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), o rácio de médicos por mil habitantes em Portugal subiu 74% em 20 anos. Em 2020, Portugal contava com um rácio de 5,5 médicos por cada mil habitantes, ou seja, mais 2,4 do que há 20 anos. De acordo com o INE, o crescimento do número de médicos em Portugal foi mais elevado do que na restante União Europeia a 27, com 3,6% ao ano entre 2014 e 2018, quando na UE se ficou pelos 1,4%. Aliás, Portugal tem neste momento uma situação privilegiada no que diz respeito à formação médica, ocupando em 2019 o nono lugar nos países da UE quanto ao número de novos estudantes em Medicina por ano: 15,8 por 100 mil habitantes, sendo a média da OCDE de 13,1 por 100 mil habitantes. No que diz respeito ao número de médicos, de acordo com dados da OCDE, a média de 36 países estudados é de 3,5 médicos por mil habitantes, muito longe dos 5,5 de Portugal (que o coloca em 3º lugar nos países com mais médicos).

Portanto, a oferta formativa é mais do que adequada às necessidades de Portugal, estando o problema no que acontece a seguir à formação especializada, isto é, na incapacidade do Estado em criar condições para que os médicos fiquem a trabalhar no nosso país e, concretamente, no serviço público. Já são muitos milhares os médicos que decidiram optar por outras soluções de trabalho, fora do SNS ou até fora do país. A Ordem dos Médicos tem, ao dia de hoje, 59.697 médicos inscritos. A principal preocupação do ministro deveria centrar-se em melhorar as condições dos cursos de Medicina já existentes (nas suas dimensões de investigação, inovação, tecnologia e formação), ajudar (já que insiste) a resolver a questão central do problema existente ao nível do SNS, contribuindo com propostas construtivas para que os médicos recém-especialistas optem por ficar a trabalhar no SNS, e não pensar apenas na obsessão que o persegue de desperdiçar o dinheiro que é de todos nós. Claro que os outros países agradecem. Mas Portugal fica mais pobre.

Na entrevista ao Diário de Notícias de 2 de setembro, o ministro da CTES fez afirmações graves. Porque revelam falta de conhecimento numa área sobre a qual quis falar publicamente e que nem sequer é da sua competência. Porque são associadas a realidades que não existem e, portanto, são falsas. Porque desvalorizam a especialidade de Medicina Geral e Familiar. Porque desvalorizam a própria Medicina e a qualidade dos seus profissionais. Por isso, o ministro da CTES perde toda a credibilidade e confiança dos médicos portugueses e dos médicos europeus. A BMA (British Medical Association) e a UEMO (European Union of General Practioners) já tomaram também posição pública sobre as suas declarações.

Não reconhecer a importância da qualidade de formação dos especialistas portugueses, da carreira médica e do SNS, significa recuar no tempo mais de 42 anos. Significa ignorar o notável contributo que os médicos deram para a qualidade dos cuidados de saúde que temos hoje. Significa ignorar de forma leviana a qualidade dos médicos de família na principal porta de entrada no SNS: os cuidados de saúde primários. Significa ignorar a posição de Portugal no mundo no que diz respeito à qualidade da formação, à capacidade de formação e aos indicadores de saúde. Lamentável e condenável. Mais ainda, a posição assumida pelo ministro da CTES, de querer ter em Portugal médicos e doentes de primeira e segunda categoria, é totalmente inaceitável porque constitui uma ameaça ao agravamento das desigualdades sociais em saúde e aos princípios fundamentais da saúde consagrados na Constituição da República Portuguesa e na lei do SNS: equidade, solidariedade e dignidade.

Senhor ministro, os médicos portugueses têm conseguido durante todos estes anos fazer mais com menos. Como de resto foi particularmente notório durante esta pandemia. A sua elevada qualidade, que resulta de uma formação de excelência e de um humanismo e solidariedade ímpares, deixam Portugal com uma imagem positiva na Europa e no resto do mundo. Não volte a falar do que não sabe. Não desvalorize a formação pré-graduada nem a importância da formação especializada. Não insista em recuar mais de 42 anos e tentar implementar uma visão da saúde próxima daquela que existe nos países menos desenvolvidos, em detrimento da Europa a que pertencemos. Seja humilde e reconheça que errou. E peça desculpa aos médicos portugueses, aos médicos europeus e aos doentes. Ninguém gostou das suas palavras. Queremos um ministro da CTES com uma postura diferente. Um ministro qualificado que respeite, valorize e defenda os profissionais e quem deles precisa. Um ministro que honre a ciência. Um ministro que saiba ouvir antes de falar. Um ministro que respeite o País.

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