O ano letivo que ora termina foi extremamente atípico e cheio de dificuldades para todo o Ensino Superior, ainda mais evidentes nas Escolas Médicas Nacionais, cujos alunos foram impedidos de estagiar e com consequentes problemas na formação dos estudantes devido à pandemia Covid-19. Assim sendo, o anúncio da possível abertura de mais vagas em Medicina é surpreendente.
Primeiro, porque chega num ano particularmente delicado para o ensino da arte médica, com reformas nos métodos de ensino feitas em poucos dias, com resultados ainda pouco sólidos. E, em segundo, porque quer introduzir na população a crença errada de que colocar mais estudantes nas Faculdades resulta em mais médicos a prestar cuidados.
Facto: Hoje, Portugal é o nono país do mundo com mais médicos por mil habitantes, de acordo com dados do Banco Mundial. Nono entre 207, sendo que apenas é ultrapassado por países como Cuba, Grécia, Lituânia e Geórgia. A par disto, é dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) com mais estudantes de medicina per capita, graduando mais alunos que a Alemanha, Suécia ou a França.
Posto isto, com mais estudantes temos mais médicos capacitados para responder aos legítimos pedidos da população relativamente à sua saúde? Não, não temos! Entramos, assim, num outro capítulo: a especialidade.
Os médicos que acabam de sair das Universidades são médicos sem diferenciação. Têm um conhecimento geral da Medicina que lhes permite aprofundar o seu conhecimento numa determinada área. Ou seja, são médicos que sabem um pouco de tudo, mas não sabem muito de nada. Já imaginou o que teria sido a pandemia Covid-19 sem especialistas? Sem médicos de Saúde Pública não teríamos sido capazes de identificar zonas de focos de doenças e prever a evolução da pandemia; sem patologistas não poderíamos ter identificado os vírus nas amostras dos doentes; sem intensivistas ou anestesistas não conseguiríamos programar os ventiladores dos doentes em estado grave; sem médicos de família teríamos sido incapazes de assegurar o acompanhamento e tratamento de doenças como a Diabetes Mellitus, a Hipertensão Arterial, alterações do colesterol, entre tantas outras. Teria sido um desastre, com muito mais mortes…
A especialidade é uma necessidade, principalmente num país onde os recursos económicos são escassos e numa área em que um erro pode custar uma vida humana. Contudo, o acesso à especialidade é limitado pelas próprias necessidades da população. Para um médico ser especialista, tem de conseguir fazer diversas técnicas e, para as conseguir, tem de as treinar. Primeiro terá de observar, depois de fazer – acompanhado por médicos experientes – para que, por fim, consiga fazer sozinho.
Vamos tomar como exemplo uma determinada operação que um médico tem de fazer 50 vezes ao longo de um ano para conseguir fazer sozinho. Se naquele hospital só há 100 doentes por ano a precisar dessa operação, só poderemos ter dois médicos a ser formados. Para podermos ter quatro, em simultâneo, no mesmo período de tempo, pode acontecer uma de duas coisas: ou operamos 100 pessoas que não precisam, o que é profundamente inaceitável, ou cada um só pode operar 25, não conseguindo treinar o suficiente para fazer sozinho. Esta lógica é válida para todas as outras técnicas que o médico tem de dominar, o que faz com que não se consigam produzir mais médicos especialistas.
Assim, podemos concluir algo importante: não conseguimos formar bons médicos especialistas além daquilo que a população precisa, independentemente do número de estudantes que acabam o curso. E se, para algumas profissões, isto não acontece, produzir maus médicos pode, literalmente, matar.
Se os médicos são formados de acordo com as necessidades, porque é que sentimos falta de médicos? A resposta não é simples, mas podemos dividi-la em duas partes.
Por um lado, nem tudo o que é sentido como “falta de médicos” o é realmente. Por vezes é falta de condições: de materiais, de consultórios disponíveis, de salas de operação equipadas. Por outro lado, existem assimetrias na distribuição. Os médicos são profissionais de saúde como todos os outros. São, aliás, profissionais. E se será porventura difícil estimular a mudança nos médicos especialistas com famílias e ligações a uma dada região, para os mais jovens, ainda internos, poderão existir condições para a mobilidade ser fomentada. O planeamento médico, quer na sua distribuição, quer na criação de condições de trabalho atrativas pelo sistema de saúde, principalmente das regiões interiores e rurais, é urgente. E este alerta tem sido deixado à tutela sucessivas vezes, sem que qualquer solução viável, respeitadora dos cidadãos, tenha sido apresentada.
Sendo assim, o que acontece se colocarmos mais estudantes de Medicina nas Universidades e Hospitais portugueses? A sua formação será ainda mais comprometida. Teremos estudantes que não treinam o suficiente para ter um conhecimento geral da Medicina. Teremos muitos médicos pouco diferenciados, com conhecimento e capacidade mais fracos que talvez não estejam aptos para ingressar numa especialidade, ou que em vez de precisarem de operar 50 vezes para o poder fazer sozinhos, precisarão de muitas mais repetições.
Ter mais estudantes que acabam o curso menos capacitados, no limite, pode levar a que, em 10 anos, estejamos a formar menos médicos especialistas e a retirar à população a possibilidade de aceder a consultas, cirurgias ou urgências. Ter mais estudantes que acabam o curso com menos capacidades pode levar a que mantenhamos o número de médicos, mas com um aumento do insucesso, degradando os cuidados de saúde e arriscando vidas humanas.
Tudo isto porque foi incutida na população, por parte de quem deveria salvaguardar os seus interesses, a ideia – profundamente errada – de que há uma solução fácil para anos de mau planeamento da formação médica. E ninguém merece que lhe seja transmitida uma ideia artificial. Assim, coloca-se a questão: quando for a sua saúde que estiver em causa, prefere um único médico que saiba tudo sobre a sua doença, ou dez médicos que pouco saibam?