O dia 21 de fevereiro marcará, para sempre, o ultrapassar de uma nova fronteira na sociedade portuguesa. Ao aprovar na generalidade a despenalização da eutanásia, a Assembleia da República afirmou que a proteção da vida biológica não é um dever absoluto e que o Estado pode permitir a morte aos seus cidadãos, pela primeira vez, por vontade própria e em circunstâncias muito específicas. Os projetos de lei do PS, BE, PAN, PEV e IL baixaram agora à 1.ª Comissão, onde serão coligidos e depois submetidos a votação global. Após este percurso, têm ainda de passar no crivo de Belém, onde tudo está ainda em aberto.

Se o destino legislativo do diploma é ainda uma incerteza, ainda mais o é no campo ético. O intenso debate verificado nas últimas duas semanas, e na última legislatura, não permitiu acalmar as dúvidas fraturantes sobre esta temática, permanecendo a sociedade bastante polarizada. E se é verdade que esta divisão é verdade para a maioria das pessoas, este tema constitui um desafio superior para os médicos e estudantes de medicina, muitos deles futuros médicos.

Se nada se alterar, por vontade do legislador, caberá aos médicos o planeamento e execução do ato da eutanásia. Esta é uma decisão que atribui aos clínicos uma responsabilidade colossal – dado que têm de definir os limites da vida humana e se os aceitam nos mesmos termos que os seus doentes – e, também, injusta, porque muitos nunca a pediram. Muitos recusaram-na mesmo.

No início da sua carreira, todos os médicos fazem um juramento. Erradamente designado de juramento de Hipócrates, a sua formulação foi adotada em Genebra pela Associação Médica Mundial em 1948 e revista em 2017, e afirma que será respeitada “a autonomia e dignidade do doente, [mantendo-se] o máximo respeito pela vida humana”. Pode então a eutanásia violar os princípios máximos da prática da medicina? A resposta é tudo menos clara. Para respondermos com propriedade precisamos de esclarecer o que se entende por “máximo respeito” e “vida humana”, conceitos amplamente abordado neste debate.

A Constituição atesta a inviolabilidade da vida humana, pelo que a Assembleia da República, ao aprovar os projetos-lei dos demais partidos, separou claramente o conceito de vida humana do conceito de meramente estar vivo. Se aceitarmos esta separação, somos também forçados a aceitá-la na formulação de Genebra. Quer então isto dizer, por hipótese, que se um médico não se declarar objetor de consciência, não estará a violar o juramento que fez no início de carreira. Naturalmente, caso se declare o problema não se aplica.

Também às Escolas Médicas apresentam-se alguns desafios. Os atuais currículos foram pensados para a compreensão dos mecanismos da doença e para o planeamento do tratamento, virando-se a abordagem do ensino para um raciocínio clínico, objetivo e científico. No entanto, a provável introdução da prática eutanásia no ordenamento jurídico português obrigará a uma profunda reflexão sobre a morte, o que é morrer, e os limites da vida. Mais, exigirá que se ensine e se aprenda acerca do período que envolve a morte. Porventura, obrigará a que ao invés de tratar deveremos confortar, num exercício de profunda humildade que exigirá de cada um de nós – médicos e estudantes de medicina – a redefinição do nosso conceito de vida humana e, mais, de pessoa humana, entidade a quem se confere a dignidade. E é desta difícil análise que deverá resultar a aceitação ou recusa da prática da eutanásia pela nossa classe – estudantes hoje, médicos amanhã.

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