Portugal tem um regime de chuvas sazonal. A região mediterrânica é caracterizada por ter invernos não muito frios, mas chuvosos, e verões bastante quentes e secos onde a chuva ocasional é, em geral, fraca. Outono e primavera são amenos e com alguma precipitação, onde as trovoadas por vezes atrapalham a vida. Em regra, a chuva no território continental varia entre os 400/600mm no Sul, chegando aos 2.000mm, ou mesmo mais, a Norte, em particular no Minho. Mas as coisas mudaram.
A chuva e a temperatura têm trazido ao País uma enorme oscilação e perturbação de toda a espécie. As alterações climáticas estão na boca do mundo e os seus efeitos começam a fazer-se sentir dramaticamente. A seca é uma delas. Mas o que é isso de seca?
A chuva que cai em Portugal nos dias de hoje é já algo menos que o normal, mas principalmente chove de maneira diferente. Ou não chove durante longos períodos, como este ano, ou cai de enxurrada, provoca cheias e invade casas e campos. Esta chuva segue para o mar e não carrega aquíferos nem cria reservas no solo, passa depressa demais e faz estragos pelo caminho. Apenas as barragens retêm a que ocorre nas suas bacias. Depois vêm longos períodos sem chuva, com sol e calor, mesmo de inverno, perturbando o ciclo das culturas, modificando a resposta aos estímulos registados no código genético que a mãe natureza lhes incutiu desde a aurora dos tempos. Culturas anuais, permanentes e a floresta andam assim como que “baralhadas”, pois não lhes é natural terem sol e calor no inverno e dias de chuva ou frio no verão, como a queda de granizo.
Na vida dos agricultores as coisas complicam-se …vem aí a seca, dizem. O cidadão comum, mais urbano, aprecia o tempo ameno que o inverno lhe oferece e ouve na rádio, …hoje vamos ter bom tempo, mais um dia sem chuva.
É janeiro, as ruas enchem-se de transeuntes em mangas de camisa e os estrangeiros ficam encantados com este “paraíso” de sol onde até à praia se pode ir. Os agricultores, esses, preocupam-se com o que aí vem. É inverno e não chove, faz frio de noite, formam-se geadas e as terras estão secas. Os poços e os furos não recuperam da utilização do ano anterior e as barragens teimam em nada subir …ai, ai, vem aí mais uma seca!
Ao Ministério da Agricultura chegam as primeiras queixas, as primeiras previsões e os primeiros números das reservas das albufeiras para rega. A apreensão instala-se, mas …talvez ainda chova, pode ser que a coisa passe… e as decisões que deveriam ser desde cedo implementadas são mais uma vez adiadas, porque …talvez não seja preciso.
O inverno vai passando, o pasto começa a rarear e os animais com dificuldades em se alimentar. As plantas, com falta de humidade na terra, temperaturas amenas e dias seguidos com sol, aceleram o ciclo, reagindo ao estímulo estival que se evidencia, embora fora de época. Chega abril e com ele o verão. Dias seguidos de 30º e até mais, …uma maravilha para ir para a praia.
Os pomares e as vinhas “pensam” que estão atrasados …chegou o calor e ainda não florimos, toca a acelerar…, mas a terra está seca e a sede instala-se. A floração é prejudicada e o vingar dos frutos comprometido. Os agricultores começam a dormir mal, fazem contas à vida e adivinham o pior …aí está mais uma seca!
Chega maio e de repente uma geada e temperaturas negativas atingem a região Norte. Vinha, castanha e pomares com perdas significativas …ora bolas, mais uma machadada na colheita. A coisa já não estava famosa devido ao granizo do ano passado, e agora em vez de chuva vem um tempo destes. Lá se foi o lucro de mais um ano… Os seguros dão uma ajuda, mas nunca se substituem a uma colheita, pelo que o desânimo se instala. Sra. Ministra, por favor, olhe para nós…
Os governantes anunciam pomposamente um pacote de medidas, financiadas umas pela PAC, outras pelo PRR e outras ainda pelo Fundo Ambiental. Anunciam-se milhões, muitos milhões, para a seca, para os recursos hídricos, para a floresta e para a sua virtual reforma. As ajudas não saem do papel, mas avisam …têm de viver com o que há!
A CAP alerta que as medidas são desadequadas, insuficientes e até ilusórias. Fundamenta e propõe um conjunto de ajudas que a Ministra da Agricultura sucessivamente ignora. Demonstra por A+B que deveriam ser, ao menos, parecidas com as definidas em Espanha, a nossa mais próxima e temida concorrência. Impõe-se rapidez e simplificação, palavras com que o Governo lida mal.
Nas florestas e no montado, a falta de água no solo dá origem a fracos crescimentos da madeira e retrai os sobreiros, diminuindo-lhes a “vontade” de largarem a pele, mas, pelo contrário, a falta de frio não retarda o desenvolvimento da vegetação e a ameaça de fogo aumenta …a seca está aí, vai ser um verão tramado, vão ver…, dizem os mais velhos, …preparem-se, que o verão não vai ser meigo!
No Alentejo, na Beira interior e em Trás-os-Montes, os pastos esgotaram-se há muito e é preciso utilizar os alimentos que estavam guardados para o pico do verão. Os agricultores estão sem dinheiro e voltam a clamar por medidas, pedem que os autorizem a levar os animais para as áreas onde o pastoreio é interdito pelas regras da Política Agrícola e alertam para a urgência de se tomarem decisões …a seca está aí, de que é que estão à espera? Ajudem-nos a socorrer os nossos animais, deixem-nos fazer uns furos para termos alguma água…!
As Associações de Regantes alertam para as fracas reservas nas albufeiras, a água não chega para uma campanha de rega normal, o rateio e a diminuição das áreas regadas começa a tomar forma. Na região de Vila Franca de Xira teme-se que o ano seja difícil, …a água salgada vai subir, temos de pedir à APA que intervenha junto dos espanhóis e das entidades gestoras das barragens para que “larguem” alguma água no Tejo durante o verão, caso contrário o rio salga, as culturas perdem-se e os solos contaminam-se …ora bolas, outra vez a seca!
Começam a ouvir-se os rumores que talvez venha a faltar água para abastecimento público, que será proibido lavar ruas e automóveis com água da torneira, que se deve reduzir a rega dos jardins e não encher as piscinas. Mas estejam calmos, dizem-nos, caso a situação se agrave o abastecimento público tem prioridade e está garantido, não é caso para alarme. Já proibimos a rega aos agricultores no Algarve…!
Chega julho e com ele uma vaga de calor abrasador. Um cidadão da região de Santarém, ou de Abrantes, é surpreendido com um Tejo que se atravessa a pé. …oh Maria, pega na tralha e vamos até ao rio. Não há perigo para os miúdos, quase não tem água… Ao instalar o chapéu-de-sol naquela praia inusitada, é incomodado pelo barulho de uma máquina de um agricultor que, desesperado com a falta de água que lhe impede a rega do milho, a tenta encaminhar para o chupador… É melhor chamar a GNR, será que isto é legal? Dizem que há seca e estão a tirar água do rio? Se calhar é por isso que ele está tão baixo…?
O tempo de repente muda e avizinha-se uma trovoada seca, …é melhor irmos embora. Regressa o cidadão ao seu apartamento, refrescado pelo ar condicionado comandado à distância pela app do seu smartphone, acende a televisão e fica horrorizado com o que vê: um incêndio de proporções nunca antes vistas devasta a Serra da Estrela, deixando um rasto de horror que as televisões exploram à exaustão. O Presidente da República pede calma, porque não é tempo ainda de fazer balanços, a Secretária de Estado da Proteção Civil, tranquila, afirma: …a matemática diz que estamos “apenas” com 70% da previsão de incêndios para o ano… está tudo bem! O governo avança para o local, em peso e anuncia que os apoios não vão faltar, …a serra vai ficar melhor que antes, garantem. E o Primeiro-Ministro? …Está de férias, só chega prá semana…!
Sucedem-se as reportagens televisivas sobre a seca, sobre as consequências da guerra e do aumento dos custos de produção, com destaque para energia, fertilizantes e combustíveis. A onda de calor mostra os seus nefastos efeitos, nos pomares, nas vinhas, nos montes sem pasto e nos animais sem comida, as vindimas são antecipadas, a colheita da amêndoa também. Coisa nunca antes vista, uma seca de norte a sul, sem tréguas nem fim à vista. …Sra. Ministra ajude-nos, venha ver o desastre, será que Bruxelas não arranja uma ajuda especial? Vamos todos para a falência... Como resposta a Ministra manda que perguntem à CAP …porque é que na campanha eleitoral disse que não se deveria votar no PS? Como? Será que ouvimos bem? É uma vingança, um castigo?
Chegam notícias da Europa e do mundo. Fogos florestais, rios secos, barragens vazias, cheias inesperadas na Áustria e na Alemanha, parece que o mundo está louco …afinal isto é sério.
Os agricultores fazem mais apelos e demonstram pela evidência que o desastre está aí. O IPMA revela que a seca severa e extrema cobre pela primeira vez a totalidade do território, é chegada a hora de se tomarem medidas. Há que fechar as torneiras e aumentar o preço da água. Os agricultores vão receber ajudas para montarem painéis fotovoltaicos e serem mais resilientes no uso eficiente da água… exasperam! Isto é que são ajudas de emergência? E o futuro?
No Alentejo, contabilizam-se os fracos resultados da colheita dos cereais, alguns largados ao gado para que não morra de fome. Há vacas abortadas devido à sede e deficiente alimentação. As ovelhas passam mal e diminui a taxa de nascimentos …estamos em seca!
Nas barragens, sobressaem as marcas da descida das águas. Entidades gestoras fazem das tripas coração para assegurarem compromissos assumidos, mas não está fácil …estamos em seca!
À região de Vila Franca chega um alívio. A APA foi sensível ao problema e aceitou colaborar e modificar o regime de caudais no Tejo. Em princípio vai ser possível terminar a rega sem que o sal chegue às terras. A vontade move montanhas, quando existe.
A seca agrava-se, o País continua a arder, mas estamos em agosto e, com ele, chegam as merecidas férias do cidadão que havia “denunciado” o agricultor que bombava água do Tejo para tentar salvar as culturas. Vai para o Algarve e pelo caminho deixa a mais velha no festival do Sudoeste. No dia seguinte, levanta-se, toma um duche sem sentir qualquer limitação no uso da água da torneira, passa pelo minimercado onde compra umas maçãs produzidas no Chile e umas uvas na África do Sul. Vai para a praia, estende a toalha, ajuda a mulher a pôr protetor nos miúdos, abre o jornal e vê… “agricultores insatisfeitos com as medidas contra a seca”! … Oh Maria, olha-me estes, numa altura destas o que é que eles queriam, chuva, não? Não se calam com isto …Que seca…!