1. Guilherme Alpoim Calvão morreu há dias. Durante quatro décadas, o ar do tempo anti-fascista, anti-África, anti-pátria que englobasse restos do Império ou conservasse a sua memória sem a negar ou assassinar, transformaram-no num conhecido indesejado. A vida começara a 25 de Abril de 1974, havia uma nova pátria livre e libertadora onde não eram admitidas personagens que estorvavam. Calvão, estorvava a ideologia em uso e ultrapassava os limites politicos consentidos.
Ouvia falar dele em casa, ao meu Pai que amava África quase sobre todas as coisas e nos contava a guerra mas nunca me interessei muito por Calvão, e nem mesmo quando em 1965 fui pela pela primeira vez a Angola, Moçambique e S. Tomé – voltando dezenas de vezes – me deu para conversar com ele. A seguir fui-me entretendo com a “revolução”, ele com a contra-revolução. Os caminhos eram demasiado paralelos para se cruzarem.
No inverno de 1994 conheci-o finalmente. Entrevistei-o para o Público, integrado num conjunto de conversas que assinalavam os vinte anos do 25 de Abril, depois publicadas em livro. Foi um diálogo de combate. Fogo cerrado. Mas vislumbrei menos o guerreiro de golpes, contra golpes e “operações”, em Portugal e em África e mais um burguês solitário argumentando-me as razões da sua História.
Tinha 57 anos e perdera. As coisas eram o que eram e a sua pena por África era maior do que chorar por ela. “Este país” não era o dele, espantara-se com, digamos, a leviandade desenvolta de alguns dos seus camaradas e a mudança de pele de outros, mas não havia o cheiro a pólvora do ódio nem a cor do ressentimento. Havia memória com rostos. Não esquecera nada.
Recebeu-me no seu escritório da Baixa, andámos para a frente e para trás no tempo, apeámo-nos na Guiné, viajamos até ao Mar Verde da Guiné Conacry, parámos no Movimento das Forças Armadas (que fora convidado a integrar e recusara: quando perguntou “e o ultramar?” as respostas foram imprecisas) ; desaguámos na descolonização, depois no MDLP. Deu-me a sua circunstância da versão, mas o MDLP foi uma história com demasiados autores para ter versão única, o que é pena. Seria uma grande história. Sem surpresa retive como nesses incandescentes meses fora tão íntima a ligação e a troca de informações entre os dois lados militares das barricadas desse tempo: todos sabiam tudo de todos. As famílias são isto.
Alpoim Calvão nunca tivera grandes ilusões sobre a condição portuguesa. Combatia – antes e depois de 74, aqui e lá – porque acreditava numa ideia de Portugal. Era-lhe suficiente como forma de vida. Convivia bem com a sua própria realidade e talvez porque fosse demasiado demasiado lucido, permitia-se o uso da ironia. A guerra fizera-o conhecer bem os homens.
Nessa manhã ia-me contando as coisas, fala seca, meio sorriso, factos. As coisas como tinham sido, e os factos, amparados em muita documentação guardada. A tragédia arrumada por ordem alfabética. O que (lhe) restava do sonho – mitificado ou não, nunca saberemos – do Império, dentro de gavetas ordenadas. Mas nunca deixou de voltar, a Guiné era uma morada.
Também percebi que se muitos conheciam o militar, as duas Torres Espadas, a guerra, a bravura e a controvérsia, quase nada se sabia sobre um herói de guerra discreto que colecionava arte, era leitor com biblioteca e cozinheiro que inventava receitas, confundindo os convivas sentados à sua mesa. Mas o que me levava nesse dia a um escritório lisboeta eram as razões do militar “contra-revolucionário” e não a porcelana chinesa ou improváveis dotes de gastronomia.
2. Foi há dois ou três dias, conversando com outro grande coleccionador, Jorge Welsh – certamente o antiquário português e editor de arte de maior projecção internacional, especialista em arte relacionada com a expansão portuguesa em particular e europeia em geral, com antiquários em Lisboa e Londres – que pude comprovar a multifacetada realidade de Guilherme Alpoim Calvão, de quem Welsh era amigo próximo: a porcelana e o interesse comum pelo mundo das artes dera lugar a uma “amizade cúmplice” entre os dois:
“Almoçava muito em sua casa, era sempre ele que cozinhava. Tinha o prazer da conversa e uma curiosidade invulgar, livros, história, politica, a história da sua vida, queria que eu fosse á Guiné com ele, infelizmente nunca pude. A sua coleção não era estática, embora durante um período tenha tido uma das colecções mais importantes de porcelana da China de exportação. Mas também tinha pintura, arte namban, indo-portuguesa ou qualquer peça que despertasse a sua atenção e curiosidade. Chegou a ter a colecção mais importante de “primeiras encomendas”, as primeiras porcelanas Chinesas feitas para a Europa/portugueses, a partir do principio do século XVI até a meados do XVII. Era um coleccionar invulgar: investigava as suas peças – fossem elas valiosas ou não – do ponto de vista artístico, histórico, documental, geográfico contextualizando-as depois: em relação ao período a que pertenciam e avaliando o impacto que o resultado do seu estudo tinha na forma como ele via a vida e o mundo…”
A natureza humana é um grande mistério.
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A rematar esta breve nota deixo aqui, a titulo de de curiosidade, aquilo que nesse inverno de 1994, diante de um gravador, Alpoim Calvão me disse sobre a Operação Mar Verde. A versão do próprio. Para cada um, sua verdade. É capaz de ser isso.
P: Proponho-lhe que me fale agora da Operação Mar Verde que fez na Guiné Conacry.
R: Contrariamente ao que durante anos tem sido matraqueado na comunicação social, o principal objectivo dessa operação foi a libertação dos 26 militares portugueses mantidos prisioneiros em Conacry – com quem os progressistas da Frente Patriótica de Libertação Nacional e da Rádio Voz da Liberdade, em Argel, tão pouco se preocupavam – e um golpe de mão sobre o PAIGC, em Conacry. A inclusão do golpe de Estado na República da Guiné de Sekou Touré destinou-se a aproveitar o potencial oferecido pelo Front de Liberation National Guinéen (FLNG), que desde 1964 contactava com as nossas autoridades. De resto convém aqui recordar que algum tempo antes da Mar Verde – em meados de setenta – na fase preparatória da revisão constitucional, o então general Spínola entregou ao professor Marcello Caetano um trabalho intitulado “Algumas ideias sobre a estruturação politica da Nação” que serviu de base ao livro “Portugal e o Futuro”.
P: E então?
R: Quando oito dias antes do início da operação Mar Verde vim a Portugal pedir a autorização do presidente do Conselho para a sua execução, fiquei surpreendido pela rapidez da decisão concordante. Pareceu-me que o professor Marcello Caetano se apercebeu imediatamente do alargamento do seu espaço de manobra caso o regime de Sekou Touré fosse derrubado e o PAIGC muito enfraquecido. Tenho aliás em meu poder a minuta do acordo de assistência mútua com o dr. David Soumah, ex-membro do Governo de Leopold Senghor e que encabeçaria o novo governo da FLNG.
P: Que disse a Marcello Caetano?
R: Não deixei de lhe frisar que o golpe de Estado poderia não resultar e que para mim o essencial era a libertação dos prisioneiros e a acção sobre o PAIGC. Concordou comigo e apenas me recomendou que se deixasse o mínimo de vestígios possível.
P: Conclusão?
R: A Operação Mar Verde libertou os 26 prisioneiros; abalou fortemente as estruturas do PAIGC; afundaram-se e incendiaram-se sete “vedetas” armadas rápidas. Quanto ao golpe de Estado da FLING, o quartel do Campo Samony foi praticamente destruído e a central eléctrica da cidade também foi destruída. Subitamente Conacry reduziu-se a uma mancha escura: o Comando da Guarda Republicana de Camayene foi aniquilado e libertados cerca de 450 prisioneiros políticos – entre eles, o capitão Abou Soumah, que em 1972 veio encontrar-se comigo em Lisboa; foi destruída a Villa Silly, de SekouTouré, bem como o campo de Milícia Popular que o defendia, causaram-se algumas centenas de baixas às forças de Sekou Touré.
P: Não é essa hoje a ideia e a imagem que persistem. Para além do que me disse alguma coisa terá corrido mal…
R: A falta de precisão das informações disponíveis não permitiu a neutralização dos MIG 17 o que, dada a completa ausência de cobertura aérea para as nossas forças, me obrigou a tomar a decisão de retirar, decisão de que assumi inteira responsabilidade. Grande parte dos elementos da FLNG, dada a recepção que tiveram por parte da população, resolveram continuar a luta, que durou alguns dias e acabou por ser decidida pela intervenção das forças cubanas estacionadas em Dubreka, a cerca de 38 quilómetros de Conacry. A impiedosa repressão que se seguiu foi pretexto para uma depuração completa do regime de Sekou Touré – que para assegurar a sua sobrevivência, se viu obrigado a pedir o estacionamento em permanência de alguns navios de guerra soviéticos em Conacry.
P: E?
R: Politicamente faça a leitura que entender, militarmente acabo de referir-lhe os factos.