No início desta semana foram promulgados os dois diplomas que procedem à nova reforma da Administração Pública, ou, melhor dizendo, à sua primeira fase, uma vez que a mesma se estenderá pelos próximos quatro anos. Esta fase surge como uma exigência necessária a mais um desembolso do PRR, sendo que a concentração do governo e várias entidades no edifício da Caixa Geral de Depósitos era já um desiderato do anterior Governo. Antes designado de Campus APP, foi renomeado pelo novo Governo como Campus XXI, e prevê uma poupança de 23 milhões de euros em rendas, cargos e serviços comuns e logística.
A criação de um espaço comum ao Governo e à Administração Pública poder-nos-ia levar a pensar que estamos perante um novo movimento de centralização, não só institucional como também territorial. Mesmo que assim não seja, a proximidade da Administração Pública ao centro do poder político deverá sempre merecer a nossa atenção. Num trabalho de investigação recente, mostramos que a rotatividade ao nível político não só é um dos fatores que mais fortemente condiciona a capacidade transformacional da Administração Pública, como pode mesmo levar à sua captura e à fuga dos seus transformadores, i.e., as pessoas que verdadeiramente dinamizam a mudança.
Nessa pesquisa de doutoramento, intitulada “Visões de Futuro na Administração Pública em Portugal: Contributos das Comunidades Transformacionais para uma Melhor Governação”, alertávamos para a importância desses transformadores na promoção da coordenação e do trabalho em rede na Administração Pública, que é, justamente, o objetivo assumido com esta reforma. Assim, se não houver uma preocupação em se identificar transformadores e de os envolver com a reforma desejada, a aposta na criação do Novo Fórum da Administração Pública, por um lado, e a concentração de estruturas que reúnem elas próprias serviços e competências comuns, por outro, não serão suficientes para atingir esse objetivo.
É com o intuito de contribuir para esse conhecimento que damos aqui nota dos seis perfis-tipo de transformadores identificados pela pesquisa, bem como dos papéis que os mesmos desempenham na mudança da Administração Pública portuguesa.
Perfil 1: O académico-consultor
Articula o trabalho académico com a consultoria a entidades públicas. Pode ter formação e/ou experiência internacional, o que lhe dá uma visão de fora/comparada. Em conjunto com outras experiências prévias, essa visão motiva-o a tal articulação no sentido de contribuir para melhorar a governação e o desenvolvimento do país. Estando fora da administração, as suas formas de aprendizagem baseiam-se sobretudo no contacto direto com pessoas com grande experiência prática, bem como na sua formação e na investigação que desenvolve a par dos projetos que dinamiza e/ou participa na administração. O seu papel transformacional é exercido através da intermediação e tradução de ideias, conhecimentos e linguagens entre diferentes esferas e atores, procurando influenciar a tomada de decisões. Pela necessidade de convencer e criar consensos, os seus atributos principais são a capacidade de relacionamento e comunicação e uma mentalidade inovadora e adaptabilidade.
Perfil 2: O servidor público experiente
Passou por vários serviços e organismos e ocupou diversos cargos de direção, o que lhe dá uma visão holística da Administração Pública. Tem também uma visão convicta do que deve ser o serviço público, sendo o seu papel principal o de provocar e influenciar os decisores políticos para essa visão. Ao longo da sua carreira, acumula conhecimentos práticos e aposta na formação contínua com o objetivo de adquirir mais competências e melhorar a sua prática e o seu estatuto. Nesse processo, traz ideias da academia para a prática e vice-versa. Possui uma forte rede de contactos em toda a administração, bem como ao nível político. Isso permite-lhe sobreviver aos ciclos políticos e permanecer em cargos com impacto. O seu profissionalismo, contributos e isenção podem ser reconhecidos com a chamada a um gabinete ministerial ou com a sua elevação a assessor político. Os seus atributos transformacionais prendem-se sobretudo com um estilo de liderança partilhada e com a sua integridade e orientação para o serviço público.
Perfil 3: O pioneiro
Está ligado ao surgimento de áreas e/ou de organismos novos na Administração Pública, podendo manter, em paralelo, relação com a academia. A formação contínua e uma permanente atualização de competências é a sua principal forma de aprendizagem, ainda que ser pioneiro também lhe permita/implique aprendizagem pela experimentação. O seu papel transformacional prende-se sobretudo com testar, desenvolver e implementar processos e procedimentos novos, mais racionais e otimizados. Dado que áreas e/ou organismos novos funcionam numa lógica de projeto, é comum que à medida que se institucionalizam processos isso crie progressivamente um conjunto de constrangimentos institucionais que acabam por cristalizar essa área ou organismo. Essa perda de liberdade de inovar pode levar à saída deste perfil para o setor privado ou para a academia. Os seus atributos pessoais relacionam-se com uma mentalidade inovadora e adaptabilidade e com a sua integridade e orientação para o serviço público.
Perfil 4: O assessor-cooptado
Foi convidado para cargos de direção ou de assessoria em função do seu trajeto em outras áreas. Pode ser académico, mas não necessariamente. Possui capital político e competências específicas que a administração pública tem dificuldade em atrair através das suas formas tradicionais de recrutamento. A sua visão é essencialmente técnica, mas domina o jogo político. Pode até já ter tido participação partidária. Tem como motivação principal contribuir para melhorar as práticas administrativas, sendo o seu papel transformacional o de desenvolver modelos de gestão mais racionais. Os principais atributos deste perfil estão associados com uma mentalidade inovadora e adaptabilidade.
Perfil 5: O académico-dirigente
É um perfil atípico, podendo até ser subdividido em dois: um trajeto de académico na carreira com grande capital político que é convidado para dirigir um serviço ou um organismo num momento determinante; um trajeto de funcionário público na carreira que é paralelamente um académico e que, pelo seu trabalho e competência, bem como pelos seus contributos académicos para melhorar a prática, tem uma ascensão rápida como dirigente, acabando por sair para fazer carreira na academia, ainda que mantendo relação com a administração. Em comum, ambos são movidos por melhorar a prática e contribuir com conhecimento útil para a governação, partilhando também o reconhecimento político-administrativo do seu trajeto académico. O seu papel transformacional não é tão claro como nos outros perfis, mas devido ao seu trajeto duplo, poderão atuar como intermediadores e tradutores que procuram influenciar a tomada de decisões políticas, reunindo atributos de todas as categorias identificadas.
Perfil 6: O político-académico
Faz ou fez carreira política e académica, tutelando ou ocupando cargos diretamente relacionados com a administração pública. Essa experiência de governação permitiu-lhe conhecer bem as disfuncionalidades que a influência política na administração pode criar. Defendem, por isso, que são necessárias mudanças nesses dois níveis. As necessidades dessas mudanças motivam o seu trabalho académico, com o qual procuram contribuir com conhecimento útil para melhorar a governação. O seu papel passa pela disseminação de um ideal de serviço público, estando os seus atributos principais associados à capacidade de relacionamento e comunicação.