No século XIX, em França, era o romance histórico, de Dumas ou de Ponson du Terrail, publicado em folhetins e criando, todos os dias, o suspense do dia seguinte, que popularizava a História; e no século XX era Hollywood que contava à América e ao mundo a História de Roma, a conquista do Oeste, a Guerra do Pacífico e todo o século XX até ao fim da Guerra Fria, elencando sempre uns “bons” e uns “maus”, na tradição do maniqueísmo protestante. Hoje, um dos modos mais comuns de percepção e divulgação da História são as séries televisivas.

The White Queen é uma série dramática em dez episódios sobre a Guerra das Rosas, o conflito pelo trono de Inglaterra que, durante mais de trinta anos, opôs os Lancaster (rosa vermelha) aos York (rosa branca). A série não tem a envergadura de Game of Thrones – cujo argumento, entretanto, terá também partido da Guerra das Rosas – mas é bem estruturada, tem bons actores e um guião sem as absurdas cedências a políticas de género ou outras desgarradas fantasias inclusivas com que agora nos surpreendem algumas produções.

Na Guerra das Rosas de The White Queen também não deixamos de ter, ainda que mais moderadamente, “bons” e “maus”, até pelo legado do teatro de Shakespeare – a divulgação histórica da passagem do século XVI para o século XVII que, pela sua genialidade e capacidade de capturar, ou até de inventar, a natureza humana, acabaria por perdurar.

Entre as fontes de Shakespeare para Ricardo III estava Thomas More – o autor da Utopia e chanceler de Henrique VIII que, ao pôr a lealdade ao papa de Roma e as suas convicções de católico à frente da sua obediência ao rei Tudor, acabou decapitado.

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O livro de Thomas More, The History of King Richard the Third, escrito entre 1513 e 1518, é curto e ficou incompleto. Começa com uma nota biográfica do rei Eduardo IV – o rei York que, em The White Queen, é protagonizado por Max Irons. Na nota, More descreve Eduardo, o rei amado pelo povo, como sendo de rosto belo e de corpo poderoso e forte, ainda que nos últimos anos, devido a uma “over liberal diet”, se apresentasse corpulento e pesado. Ficamos também a saber que o facto de o príncipe exemplar e sábio ter sido, na juventude, dado à “libertinagem carnal” não afectou o amor que o povo lhe tinha; bem pelo contrário: “There was never any prince of this land attaining the crown by battle so heartly beloved by the substance of the people”. Todo este introito de virtudes morais e físicas vai contrastar com o perfil do irmão, Ricardo, duque de Gloucester, que reinou entre 1483 e 1485 como Ricardo III.

Ricardo III, segundo Thomas More

Thomas More ou Morus, São Tomás Moro (1477-1535), entrou no calendário católico em 1935, quando foi canonizado por Pio XI. Nascera numa família de mercadores de boa burguesia de Londres, a burguesia ilustrada onde a Coroa recrutava os seus servidores. Era o tempo do Humanismo e dos humanistas, da formação dos Estados nacionais e da grande ruptura religiosa luterana. A Utopia de More é de 1516, as 95 teses de Lutero, que marcam o princípio da Reforma, são de 1517, e O Príncipe  de Maquiavel foi escrito em 1513.

O Príncipe de Maquiavel e a Utopia de More – o realismo cínico de um e o idealismo platónico do outro – fundam duas correntes contraditórias do pensamento ocidental. Porém, Maquiavel nem sempre foi maquiavélico – desenvolvendo noutras obras uma teoria política de base republicana que exaltava a liberdade e a virtú na defesa da comunidade – e More, no seu tempo de Chanceler, não terá deixado de recorrer às maquiavélicas artes do poder.

O Ricardo III de More está envolto em polémica e o perfil traçado pode não corresponder à verdade, mas o facto é que inspira Shakespeare e contamina a posteridade.  Assim, a imagem de Ricardo III que, através de Shakespeare, nos fica e que persiste nos séculos seguintes, é a de um tirano paranóico e infanticida, física e moralmente coxo e corcunda, um anti-herói  que se confessa directamente ao público com uma cumplicidade inquietante.

More servira como pajem o Arcebispo da Cantuária, John Morton, e depois estudara em Oxford os clássicos e as línguas clássicas. Tornara-se também amigo e correspondente do humanista por antonomásia – Erasmo de Roterdão –, que traduzira o Novo Testamento numa versão alternativa à Vulgata na tentativa de aproximar o Cristianismo e o Humanismo, mesmo incorrendo nalguns desvios da ortodoxia papal.

More casou em 1505 com Joanna Colt e tiveram quatro filhos. Joanna morreu em 1511 e Thomas casou pela segunda vez com uma viúva, Alice Harpur. Em 1509, Henrique VIII subiu ao trono e, um ano depois, More foi eleito para o Parlamento e entrou na vida política e no serviço da Coroa. Foi nos anos seguintes que escreveu a inacabada The History of King Richard The Third. Para Peter Ackroyd, um dos seus biógrafos, a sua História de Ricardo III é influenciada por historiadores romanos como Salústio e Tácito e pelos exempla de que se serviam para caracterizar a figura do tirano. More recorre também a fontes orais e transcreve discursos de personalidades da época, uma espécie de debates ou disputationes, em que se medem os méritos retóricos e jurídicos dos intervenientes e das suas razões.

Na sua História, More descreve Ricardo, não como um bom príncipe mas como o protótipo do “tirano maquiavélico” (se então a fama do autor de O Príncipe já tivesse sido elevada a adjectivo). Secreto, profundamente dissimulado, arrogante, malévolo, ambicioso, indiferente perante amigos e inimigos, Ricardo, no curso da narrativa de More, tudo faz para declarar bastardos os filhos do seu irmão Eduardo.  Depois, quando o duque de Buckingham faz o seu panegírico, o tirano, perante o vazio deixado pela bastardia dos sobrinhos, aceita com dissimulada relutância o trono. Quanto ao destino dos filhos de Eduardo, More dá conta dos rumores que garantiam terem alguns cortesãos (entre eles o Constable of the Tower, Sir James Tyrell) recebido ordens do Rei para matar as crianças.

O livro ficou inacabado. No final, Morton, bispo da Cantuária e patrono de More, exorta Ricardo a governar com sabedoria.

Muitos consideraram a obra um favor à propaganda anti-York dos Tudor; mas a vida de More, o seu lugar na história do pensamento político e o seu percurso de risco e renúncia em defesa das suas convicções, põem em causa semelhante dedução. More fora secretário privado e conselheiro do rei Tudor e chegara a Grand Chancellor de Inglaterra. Em 1530, recusara-se a assinar a carta dirigida ao Papa Clemente VII pedindo a anulação do casamento de Henrique VIII com Catarina de Aragão; em 1531 recusara-se reconhecer o Rei como chefe da Igreja de Inglaterra; em 1532 demitira-se de Chanceler e recusara-se a assistir à coroação de Ana Bolena; em 1534 fora preso sob a acusação de alta traição e encarcerado na Torre de Londres. E em 1535 seria julgado e condenado à morte por decapitação. Não era o perfil de um propagandista.

Um tirano shakespeariano

Shakespeare apresenta Ricardo como um tirano modelo, no corpo e na alma. O rei York começa logo por nascer corcunda e já com dentes para  que os espectadores/leitores se vão preparando para uma crescente intimidade com “o Mal encarnado”.  Depois, na sua marcha para o poder, o tirano vai confidenciando ao público as suas manobras perversas, deixando-o perscrutar os abismos da sua alma negra.

Shakespeare não deixa dúvidas quanto à perversidade e à maldade extremas de Ricardo. Depois das três peças de Henrique VI, esta é a última das suas King Plays sobre a Guerra das Rosas.

Protegido de Isabel I, Tudor, e depois de Jaime I, Stuart, Shakespeare sabia que, a partir de 22 de Agosto de 1485, da morte de Ricardo em combate na batalha de Bosworth Field, mandava o maniqueísmo dos vencedores que se separassem os bons ingleses dos maus ingleses. Conhecia bem os usos do tempo e a dureza da censura isabelina, mas talvez o seu excesso de zelo na apreciação do último rei York, mais de um século passado sobre a vitória dos Lancaster, ficasse sobretudo a dever-se à oportunidade de poder encarnar o Mal numa personagem real, retratar um tirano, mostrar a natureza humana no seu mais pérfido esplendor.

Os pensadores do Renascimento estavam então a pensar “as categorias do político” à luz dos textos clássicos e da sua experiência histórica. Depois da fragmentação feudal da poliarquia da península italiana e do nascimento das monarquias centralizadas europeias, procurava-se a forma de governo que melhor garantisse a justiça, a paz, a liberdade privada e a segurança da comunidade. Para a maioria essa forma de governo era a monarquia – o governo de um só.

A figura do tirano tornava-se, por isso, fundamental: era crucial recordar e repensar a distinção entre a monarquia, o governo de um só para o bem comum, e a tirania, o governo de um só a favor de si mesmo, da sua família e dos seus cúmplices. Aristóteles desenvolvera o tema na Política, mas já falara nele na Ética a Nicómaco, estabelecendo critérios de distinção: o Rei mandava tendo em conta o bem-estar dos súbditos e zelando pelo bem comum; o tirano não: o tirano mandava arbitrariamente sem consideração pela justiça e pelo bem comum.

O tema do tirano e da tirania era já um tema bíblico, do Livro de Samuel, a propósito da instituição dos Reis, e fora tratado pelos filósofos gregos, pelos historiadores romanos e por Santo Agostinho e S. Tomás de Aquino. Em França, em 1579, em pleno tempo de guerras civis religiosas, dois huguenotes, Duplessis Mornay e Hubert Languet, tinham publicado, em Latim, a Vindiciae contra tyrannos, com edição em francês em 1581. Na Vindiciae, discutia-se longamente a resistência ao tirano e o modo de a comunidade se livrar dele, lembrando e justificando os “bons” tiranicidas.

No seu Ricardo III, Shakespeare vai tratar, a seu modo, o mesmo tema, pegando na História próxima inglesa e colaborando na glorificação dos Tudor reinantes, através da demonização do inimigo vencido.  Ricardo entra em cena com o famoso solilóquio sobre “o Inverno do nosso descontentamento”; e, falando para toda a Humanidade, faz dela cúmplice da sua condição, de uma mesma condição, a condição humana que Maquiavel olhara como predominantemente má ou tendencialmente pecaminosa.

Escrita nos princípios da década de 1590, Ricardo III foi uma das primeiras peças de Shakespeare. O seu contemporâneo Christopher Marlowe já apresentara em Tamburlaine, the Great e em The Jew of Malta criaturas malévolas com sucesso e poder, mas que eram rapidamente vencidas e castigadas. Marlowe lera Maquiavel, ao tempo considerado um mero conselheiro de tiranos, e Shakespeare conhecia as peças de Marlowe. Assim, o jovem Shakespeare juntou as histórias da vileza de Ricardo e deu-lhes uma lógica maléfica, de ambição sem limites. E seguindo a tradição bíblica e da Patrística    – a Bíblia era a grande leitura no século XVI – deu ao seu tirano o fim terrível dos tiranos antigos, mostrando-o aterrado por pesadelos na véspera da batalha e querendo fugir ao seu destino, perdida a batalha.

O tirano e a sua circunstância

Recentes achados arqueológicos do cadáver de Ricardo III põem em causa a corcunda e as demais mazelas físicas com que, quer Thomas More, quer William Shakespeare, deformaram o Rei. Seria também tão mau de alma e espírito como os dois o pintavam?

Há uma forte corrente no Reino Unido para reabilitar o vilão, e a ficção não deixa de a acompanhar: em The White Queen, o Ricardo III interpretado por Aneurin Barnard já não é corcunda, nem coxo, nem intrinsecamente mau. Pode ter um olhar sugestivo de um obscuro mundo interior de inseguranças e pesadelos, mas já não é o tirano maquiavélico de More ou Shakespeare: é uma vítima das circunstâncias que, incapaz de enveredar pelo bem, é empurrado para a intriga e para o mal.

Aparentemente, o presente vem dar razão a Francesco Guicciardini contra Maquiavel, More e Shakespeare.  Para Maquiavel, os legisladores e os governantes deviam partir do princípio de que todos os homens eram maus, suspeitos, culpados, porque eram naturalmente perversos; já Guicciardini contrariando-o e ao pessimismo antropológico radical de que partia, afirmava que os homens, por natureza, tendiam mais para o bem do que para o mal – ainda que as circunstâncias pudessem levá-los à perversidade.