D. Dinis andava desconfiado com as saídas de D. Isabel. Ainda por cima, notava quebras inexplicáveis no arsenal militar. Decidiu, então, surpreendê-la numa das suas saídas, convencido que Isabel roubava armas para ajudar conflitos armados. Quando a encontrou, notou que a rainha tentava disfarçar o que levava no regaço. Isabel ainda disse que ia comer açaí com as amigas, que levava, até, tupperwares de casa para não usar plásticos, mas o rei, enfurecido, obrigou-a a abrir o manto. E, mal dele caíram um conjunto enorme de armas, Isabel anunciou: são danos colaterais, Senhor, são danos colaterais.

Normalmente, quando um vizinho decide que o sábado de manhã é a melhor altura para perfurar uma parede, ignorando os nossos planos de dormir até tarde, tornamo-nos, sem querer, um dano colateral. Quando compramos um telemóvel, e aceitamos que os nossos dados pessoais se tornem mais acessíveis, assumimos isso como um dano colateral. Quando um adolescente deixa de sair com os amigos, para ficar com a namorada, pouco se importa com o certo dano colateral.

No fundo, o dano colateral é uma cadeia de pequenas tragédias. Deixas um amigo, ganhas uma namorada, perdes o amor, ficas sem ambos. Como quem joga dominó numa mesa bamba, tudo cai aos pedaços, mas devagarinho, e o pior de tudo é que nem há o consolo de dizer que foi uma decisão nossa. Não imaginávamos que acontecesse. A vida é que foi empurrando as peças, de uma forma quase indiferente. E, nós, só ficámos ali a ver o estrago. No fundo, os danos colaterais são a traição silenciosa de coisas que pareciam perfeitamente inofensivas. Tal como o amor, onde sabemos que, mais cedo ou mais tarde, algo se parte.

É por isso que é difícil chamar dano colateral a mortes civis em guerras. 10 mil danos colaterais na Ucrânia e mais de 20 mil na Palestina são danos colaterais demasiado grandes. Mas, num tempo de tanto literalismo, cai sempre bem um eufemismo. Afinal de contas, “danos colaterais” é uma expressão tão bonita e tão delicada quando serve para falar de pessoas esmagadas como formigas. Aliás, já tem direito a sinónimos. Uma bomba atinge um bairro, é um erro de cálculo. A fome continua a arrasar uma aldeia, estamos perante um desvio de políticas. Só é pena os danos colaterais quase nunca terem autor. Um dano é um vidro partido, uma camisa manchada, mas, neste caso, os danos colaterais somos nós.

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Dizer que “no bombardeamento houve danos colaterais”, é o mesmo que dizer “ups, não foi bem culpa nossa”. Dizer que vítimas civis são danos colaterais é o mesmo que empurrar o mal para a periferia da consciência. Dizer que algo se trata de um “dano colateral” quando uma bomba caiu num hospital, é o mesmo que atirar um piano de cauda por uma janela, ele cair em cima de alguém, e gritarmos do parapeito: “oh pá, foi sem querer, desculpe lá qualquer coisinha e ande com mais cuidado para a próxima”. Mas, são tudo coisas que, como sabemos, acontecem sempre aos melhores. Se um miúdo chega a casa com o telemóvel partido e tenta falar em dano colateral, leva logo um sermão de meia hora sobre responsabilidades e sobre como “o dinheiro não cresce nas árvores”. Quando uma cidade fica reduzida a cinzas, trata-se de um mal-entendido com alguma gravidade.

Aliás, é pena que quando Hamlet está furibundo e mata Polónio e Cláudio, não haja ninguém na sala que, perante o nosso cérebro que grita “meu Deus, que tragédia!”, nos sussurre “calma, é só um dano colateral”. Aliás, se Shakespeare fosse realmente um génio, teria percebido que a melhor resposta da mãe de Hamlet ao facto do filho ter morto duas pessoas seria: Não digas “mortos”, pá. Diz “danos colaterais”. Soa muito melhor. E, se der jeito, mete “desafortunados” lá no meio.

Só tenho pena é dos enciclopedistas do futuro. O trabalho que eles não vão ter a tentar explicar que, em certo período da história, “dano colateral” serviu, simultaneamente, como sinónimo de “olha, estragámos o penteado” e de “parece que matámos umas pessoas”.